Palavra de Especialista

20
outubro
Publicado por admin no dia 20 de outubro de 2015

 

Luiz Carlos Mantovani Néspoli (Branco)
Superintendente da ANTP

 

Créditos: Cidadecurva

 

As cidades são constituídas de edificações, espaços não edificados e canais de comunicação. Mas quem realmente as constrói é a iniciativa privada, que engloba tanto simples cidadãos, quando criam suas propriedades – às vezes pequenas e precárias –, quanto, e principalmente, os grandes empreendedores imobiliários, grandes empresas e o setor financeiro. Neste processo contínuo de mudança – a cidade é um organismo vivo e em constante mutação – o protagonismo da iniciativa privada é maior que o do poder público, o que em outras palavras significa dizer que nem sempre o que prevalece é o interesse da população. O processo de gentrificação, mal urbano da nossa era, é um exemplo claro desta prevalência do interesse privado sobre o público.

 

Apesar de caber ao Estado um papel secundário, resta-lhe, mesmo que em menor escala, a possibilidade de carrear seus recursos para induzir o desenvolvimento. E alterar as cidades em prol do interesse das pessoas. Cabe ainda ao Estado criar os canais de comunicação – as vias urbanas – que permitam o deslocamento da população e o acesso a tudo aquilo que a cidade oferece e que todos precisam. Evidente que há empreendimentos (os chamados loteamentos), cujo viário é obrigação do setor privado, mas mesmo assim, circunscrito ao empreendimento. Neste caso, cabe ao Estado unir tais empreendimentos ao restante da cidade, uma vez que sem tal ligação estes perderiam sua atratividade como negócio.

 

Com o crescimento da economia global, a diversificação das atividades e o aumento da população, as cidades vão se expandindo. Ao sabor do vento. Mais precisamente, ao sabor dos empreendimentos privados, onde o processo de gentrificação surge como uma característica dos nossos dias, muitas vezes confundida com “revitalização urbana”. O que, na verdade, não passa de uma falácia.

 

A população de menor renda, com reduzido poder aquisitivo, acaba sendo empurrada para áreas distantes, apartada de bens e serviços essenciais, situação determinada economicamente pela ação do empreendedor imobiliário. Esta situação se verifica mesmo em planos habitacionais oferecidos pelo governo em suas várias instâncias, como no caso do programa Minha Casa Minha Vida (federal) e de planos estaduais (caso da CDHU, do estado de SP). Esta situação é histórica, repetida inúmeras vezes em projetos habitacionais que trazem a chancela governamental, o que vale para praticamente todas as cidades brasileiras. Ao fim e ao cabo, apesar de slogans e boas intenções, o que de fato determina um projeto habitacional é o preço da terra. É ele que comanda, ao exigir uma equação financeira que só fecha se o custo total da moradia for financiável à classe de baixa renda. O resultado é velho conhecido da área de transportes, uma junção de problemas que vão desde sistemas de transportes precários, aumento brutal no tempo de viagem, incremento significativo do custo operacional global do sistema e, ao fim, maior pressão tarifária.

 

Para a população de média e alta renda, o empreendimento traz na algibeira produtos com apelos atraentes. As mensagens publicitárias apelam para sonhos de consumo tais como a melhoria da qualidade de vida, a segurança pública e a fuga da poluição, ruído e congestionamento. Basta dar uma passada de olhos nos cadernos imobiliários para ver condomínios “parques” ou bairros “jardins”. Vida entre passarinhos, campos verdejantes, lagos, cisnes, crianças se divertindo nas ruas, estes são os principais apelos. Nos conteúdos dessas mensagens, no entanto, não se encontra a informação básica de que entre o condomínio e a cidade há uma rodovia ou grande avenida (às vezes as duas coisas), que vivem entupidas de carros. Como tudo é muito distante de tudo e a família tem uma diversidade de atividades, todos acabam optando por ter seus próprios carros. Paradoxalmente, o argumento para a fuga da cidade – o congestionamento – ao invés de resolvido, acaba ampliado pela “solução”, com a insegurança pública surgindo de forma cruel nos assaltos aos automóveis parados ou em vias ermas.

 

Para estes locais, constituídos de viários sinuosos, “cul-de-sac” (becos sem saída), enormes perímetros murados, entre outras características que impedem o tráfego de passagem, é quase impossível uma rede decente de transporte público. O acesso às moradias é restrito apenas aos automóveis. São megaprojetos de luxo, a verdadeira negação da cidade existente e tradicional. Fechados em si mesmos, tornam-se excludentes, um apartheid social.

 

Apesar de tudo resta ao Estado o poder de regulação, quando estabelece, por exemplo, os planos diretores e as leis de uso e ocupação do solo. Mas na correlação de força entre os poderes executivo e legislativo, com um ou outro (quando não ambos) contaminado pelo real poder econômico nas cidades, tem-se como resultado planos oficiais que não conseguem conduzir a cidade para outro destino e formato senão o que vemos hoje. Raros são os planos diretores ou as leis de uso do solo que consumam a mudança. O recente Plano Diretor Estratégico da cidade de São Paulo contempla dispositivos que permitem vislumbrar no futuro uma mudança significativa. Mas, e há sempre um “mas”, se ao longo das próximas décadas as medidas definidas forem seguidas e aperfeiçoadas pela atual e próximas gestões municipais.

 

Do dito até aqui pouca ou nenhuma novidade se encontra. Conhecemos esta realidade há muito e muito tempo. Ao longo de anos e anos essa lógica econômico-financeira tem prevalecido, levando o Estado a reboque, numa demonstração de franca tibieza, quando não conluio. O resultado final é danoso para a maioria, posto que a cidade reduz brutalmente sua competitividade, piora a qualidade de vida de seus habitantes, os congestionamentos se tornam cada vez mais frequentes, acidentes e mortes no trânsito se multiplicam, pessoas morrem em decorrência da poluição e os sistemas de transporte público, estes tornam-se mais ineficientes, com as ruas tornando-se a cada dia mais inóspitas para a dimensão humana.

 

Mas há coisas ainda não totalmente visíveis ou diagnosticáveis a indicar, ainda que de maneira sutil, que mudanças culturais estão ocorrendo no mundo e no Brasil. São ligeiros sinais. A configuração do que convencionamos chamar de família está mudando, lentamente, mas está mudando. Hoje as pessoas se casam mais velhas, os casais têm muito menos filhos que antigamente. A tendência mundial nos países mais desenvolvidos é mais radical ainda, a de não ter filhos, o que já é para eles um grande problema para a previdência social. Filho, no máximo um. Hoje, há mais solteiros que no passado, vidas solitárias são mais frequentes e novos tipos de família estão surgindo, como os casais homo. E estamos apenas no começo dessa transformação social. O que não haverá daqui a 30, 40 ou 50 anos?

 

Ao mesmo tempo, jovens estão optando por coisas diversas em suas vidas, alterando modos de viver e hábitos de consumo e moradia. Velhas estruturas de trabalho – as grandes corporações –, com carreiras definidas para os próximos 30 anos, já não são tão atraentes como eram 40 ou 50 anos atrás (até porque são uma raridade). Na era digital, há novas formas de trabalho. Há menos desejo por carros do que por gadgets, as redes sociais substituem antigas formas de relacionamento. As cidades nestepadrão já não condizem mais com esta nova visão de mundo. Os jovens buscam novas formas de usufruir da cidade, que surpreendem por sua quebra de paradigmas. Buscam conexões, o que uma cidade espalhada dificulta e muitas vezes impede.

 

Na tecnologia, surgem novas maneiras de organizar os serviços, com os aplicativos entrando na vida das pessoas e na configuração de muitos negócios, reduzindo deslocamentos, distâncias e tempos, como nos casos dos taxis, motofretes, a comida delivery, e assim por diante. Cresce a modalidade de trabalho a distância, em esquema de home office, com o celular permitindo conexão permanente a e-mails fora do horário de expediente, além do tempo despendido à disposição do empregador.

 

O modelo “share” introduz cada vez mais novas formas de compartilhamento. Quem oferece carros compartilhados jáproclama que no futuro os cidadãos não precisarão mais ser proprietários – basta sair à rua, pegar um carro disponível e entregá-lo no seu destino, tornando obsoleta a própria ideia de garagem. Na medicina, o compartilhamento de exames e diagnósticos a distância já é um fato, e virá o dia em que o paciente não precisará mais ir ao consultório.

 

Recentemente, um novo empreendimento imobiliário foi lançado nas proximidades do centro da cidade de São Paulo. Trata-se de um “home share”, cujo apelo de venda é “compartilhar é ter mais por menos”: carshare, bike share, work share, proximidade de praças, dos principais sistemas de transporte coletivo e de ciclovias nas cercanias. São apartamentos pequenos, com o apelo “smart”. Para quem foi destinado, senão para esta nova realidade “jovem” ou “familiar”? O mercado acompanha as transformações sociais. Como também produz e induz novas transformações.

 

Ter uma casa ampla e confortável num condomínio, com dois ou três filhos pequenos, é ainda possível. Mas para filhos adolescentes e adultos, uma casa como esta os distancia dos amigos, dos bares, das baladas, do ambiente universitário, de tudo aquilo que forma seu universo de interesses. Hoje, na maior parte do tempo, e cada vez mais, pais e mães tradicionais ocupam sozinhos seus lares. No futuro, casais sem filho, ou com apenas um único filho, que interesse terão em morar em locais assim?

 

No verso desta medalha, as cidades vêm produzindo gestores públicos mais arejados e atentos às mudanças que o mundo descortina, quebrando velhos costumes, retomando espaços da cidade invadidos pelo automóvel, criando mais compartilhamento das vias, reduzindo limites de velocidade, aumentando espaços para pedestres com o surgimento de novas áreas de convivência. Enfim, estão tornando a cidade mais humana, mais próxima da dimensão das pessoas.

 

Jovens lideranças começam a surgir, a indicar que aumentará e muito no futuro o número de gestores públicos com esta nova mentalidade. A participação social tendo a cidade como foco, sem a intermediação de organismos políticos tradicionais, é a grande novidade. Os jovens se organizam em torno de causas urbanas bem claras e específicas, que remetem a políticas públicas inovadoras, que abrangem desde ações em prol de diferentes modos de locomoção, pelo uso da bicicleta e pela melhora da acessibilidade, por exemplo. Hoje a questão urbana deixou de ser função exclusiva do gestor. Basta ver a discussão que se forma hoje em torno do destino do famigerado minhocão. A participação das pessoas tem produzido mudanças urbanas significativas.

 

Por fim, sabemos bem que na economia capitalista a cidade será sempre um espaço para o empreendedorismo imobiliário, a obtenção do máximo lucro e da acumulação. Mas com a mudança da cultura urbana – e há sinais de que ela será muito diversa do que é hoje –, o setor empresarial, sem perder seu manto capitalista, irá acompanhar as tendências, produzindo projetos diferentes e sedutores a esta nova mentalidade. Se isso acontecer, e a administração pública incentivar e acompanhar a mudança cultural, quiçá nós possamos conhecer cidades mais saudáveis e humanas no futuro.

 

Quem viver verá?

 



Compartilhe

Comente

1 Comentário