Pé de Igualdade

24
July
Publicado por admin no dia 24 de July de 2019

MINHA EXPERIÊNCIA DE CAMINHAR NAS RUAS DE CIDADES PERUANAS
Texto e fotos de Meli Malatesta

O Peru é um país emblemático e por este motivo atrai pessoas de toda a parte do mundo na busca de conhecer sua história, cultura, arte e gastronomia. Também eu fui uma das atraídas e mergulhei de corpo e alma na vida de suas cidades e parques arqueológicos.

Foi só pelo período de uma semana, mas foi o suficiente para sair de lá energizada. Como não poderia deixar de ser, apesar de não ser este o objetivo da viagem, como especialista no assunto, não deixei de observar e avaliar as condições de mobilidade envolvendo o caminhar, pedalar, transporte coletivo e do trânsito das maiores cidades que visitei: Lima e Cusco.

Lima, a capital
Lima é uma cidade grande, com população semelhante à de São Paulo e, obviamente, com os mesmos gigantescos problemas. Mas, o trânsito de lá consegue ser mais caótico, produzindo um ambiente urbano ainda pior, formado por frota veicular mais antiga e sem qualquer tipo de planejamento que priorize o transporte coletivo. Também não há ainda linhas de transporte metroferroviário. A primeira linha de metrô se encontra em obras e o primeiro BRT da cidade tem um trecho funcionando e outro ainda em construção. Bastante segregado da malha urbana, esse corredor opera no eixo de uma via expressa e em boa parte em situação de trincheira, tal como a avenida 23 de Maio, em São Paulo.

De forma geral as pessoas são transportadas por uma frota de ônibus e micro-ônibus antiga, mal conservada e muito poluente, complementada por um sistema caótico de vans que notadamente colaboram para tumultuar ainda mais o complicado trânsito. Para piorar mais um pouco, todos estes veículos são movidos à combustíveis derivados de petróleo. Assim
já dá para imaginar o ambiente altamente poluído com ar irrespirável, já que chove muito pouco por lá.

 

BRT de Lima: operação ainda parcial em meio ao trânsito confuso 

Em Lima, fiquei hospedada no distrito de Miraflores, considerada uma região de alto padrão, situada à beira do mar. Lá constatei vários tipos de intervenções de urbanização com boas calçadas: todas planas, de larguras adequadas e sem interferências geradas pelos lotes e edificações. Havia também uma rede de ciclovias a se estender nas vias principais, principalmente ao longo da orla marítima. Já pensou que emoção caminhar ou pedalar olhando o Oceano Pacífico?

 

Calçada e ciclovia beirando o litoral. Parque do Amor inspirado no Parque Guell de Barcelona

Mas como nada é perfeito, a rede semafórica da avenida principal de lá era operada ainda sob o conceito de “Onda Verde”, uma metodologia de programação semafórica adotada pela engenharia de tráfego nos idos anos 70 e início dos anos 80. Tinha por objetivo otimizar a fluidez do trânsito motorizado ao fazer com que a programação dos cruzamentos semaforizados entrassem na “fase verde” a partir da velocidade regulamentada para a via. Posteriormente deixou de ser utilizada por gerar muitos acidentes e atropelamentos.

No caso em questão a velocidade foi regulamentada em assustadores 60 km/h (!) em extensão considerável da via, com pouquíssimos cruzamentos semaforizados. Por se tratar de eixo comercial e de serviços, onde se situam muitos hotéis, restaurantes e lojas de artesanato, dá para imaginar o grau de dificuldade e risco em realizar uma travessia por lá.

Por outro lado, também fui surpreendida por uma coisa muito boa: todos os semáforos, tanto os voltados para travessia de pedestres e ciclistas como os de veículos são dotados de temporizadores numéricos que informam, com absoluta transparência, quantos segundos haveria para atravessar e cruzar a via e quantos segundos se deveria aguardar.

Outra coisa positiva é que os motoristas limenhos efetivamente respeitam a prioridade à travessia do pedestre na conversão e, portanto, não havia necessidade de se ter fase de vermelho geral de carros para possibilitar a travessia dos fluxos a pé. Assim com ciclos semafóricos menores, os tempos de espera para atravessar a pé e cruzar num veículo eram muito menores que os de São Paulo.

Focos para veículos: temporizadores indicam o tempo de verde e o tempo de vermelho 


“Umbigo do mundo”

Cusco é a antiga capital do Peru e significa, em quíchua, língua natal, “umbigo do mundo”. É uma linda cidade onde a arquitetura das igrejas expressa a forte dominação espanhola na época da colonização. Todas foram construídas sobre antigos templos e construções incas, utilizando suas pedras. Atualmente tem cerca de 450 mil habitantes e uma intensa vida urbana voltada à agricultura e também ao turismo, com alta ocupação de suas vias mais centrais por pedestres e veículos. Os bairros vizinhos ao Centro se distribuem pelas encostas que o circundam, e apresentam características topográficas bem intensas com ladeiras íngremes e curvilíneas.

O Centro Histórico, como não poderia deixar de ser, tem vias e calçadas estreitas revestidas de pedras irregulares, o que que nos obriga a olhar muito para o chão se quisermos evitar quedas. Por outro lado, olhando o chão acabamos esbarrando nos altos fluxos a pé presentes em praticamente todas as suas calçadas.

Ruas de Cusco intensamente utilizadas e Centro Histórico reaberto ao tráfego veicular 

A rede de vias repete a situação de Lima: trânsito caótico em vias estreitas superocupadas, frota antiga e poluidora. O mais triste foi saber que parte do Centro Histórico já foi fechada ao trânsito motorizado, mas atualmente a prefeitura abriu para carros e ônibus, o que certamente impacta de forma negativa a conservação do rico patrimônio histórico.

Outro aspecto complicado é a presença de ônibus, micro-ônibus e vans, tanto locais, como de turismo. As vans funcionam irregularmente e ainda não contam com uma operação de embarque e desembarque equacionada, vivendo em desobediência à fiscalização de trânsito local, em situação de gato e rato. Creio que o retorno da proibição do trânsito motorizado no Centro Histórico ajudaria na solução do problema.

Mas nem tudo é ruim. Nos cruzamentos semaforizados, existe a mesma temporização numérica vista em Lima, apesar de os motoristas locais não terem o mesmo apreço ao pedestre nas conversões, como observei em Lima. Não vi nenhum cadeirante em Cusco, apesar de haver o símbolo universal da acessibilidade em rampinhas de alguns locais de travessia. Provavelmente isso se deve à declividade e ao piso de pedras irregulares que reveste a maioria das vias e calçadas da região central. 

Guia rebaixada para acessibilidade em Cusco: há o símbolo discreto,
mas a 
declividade não segue o padrão adequado para possibilitar seu uso 

Aí está um belo desafio para arquitetos e engenheiros que trabalham com acessibilidade urbana: como permitir que pessoas com deficiência possam circular em cidades históricas, tal como Cusco, Paraty, Ouro Preto, Diamantina e tantas outras existentes pelo mundo? Sugestões serão bem-vindas 🙂



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Pe-de-igualdade Meli Malatesta (Maria Ermelina Brosch Malatesta), arquiteta e urbanista formada pela Universidade Presbiteriana Mackenzie e com mestrado e doutorado pela FAU USP. Com 35 anos de serviços prestados à CET – Companhia de Engenharia de Tráfego de São Paulo, sua atividade profissional foi totalmente dedicada à mobilidade não motorizada, a pé e de bicicleta. Atualmente, ministra palestras e cursos de especialização em Mobilidade Não Motorizada além de atuar como consultora em políticas, planos e projetos voltados a pedestres e ciclistas.
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