O ônibus não é o vilão

Com o provável atraso de mais 20 anos na modernização da frota de ônibus de SP, artigo de Olimpio Álvares oferece dados para o debate sobre tecnologias mais "limpas"

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Fonte: Diário do Transporte**  |  Autor: Olímpio Álvares*  |  Postado em: 25 de setembro de 2017

Ônibus articulado no centro de São Paulo

Ônibus articulado no centro de São Paulo

créditos: Elisa Rodrigues/SPTrans

Atendendo a um pedido do Diário do Transporte, Olímpio Álvares discute em artigo as propostas de revisão do artigo 50 da Lei Municipal 14.933/2009, que trata da substituição gradual da frota de ônibus urbanos regulares de São Paulo por alternativas tecnológicas mais limpas


Observamos uma variedade de números nas diferentes manifestações dos distintos grupos de interesse – inclusive comercial e de grande monta –  envolvidos na questão das emissões de poluentes desses ônibus, causando justificada desorientação nos não-especialistas, que estão expostos a informações descompromissadas e contraditórias que surgem a cada etapa do processo.

 

Os 15 mil ônibus regulares do Município de São Paulo e a contaminação atmosférica local pelas partículas cancerígenas do diesel


Segundo o Relatório de Qualidade do Ar de 2016 da Cetesb, do total das emissões de material particulado lançado por todas as fontes (veiculares, industriais e outras) em São Paulo, cerca de 37% têm origem nos veículos a diesel. Todos os ônibus urbanos, incluídos os regulares e aqueles que não são de responsabilidade da São Paulo Transportes – SPTrans, contribuem com cerca de 9,2%.

 

A frota atual de ônibus regulares sob concessão municipal, com aproximadamente 15 mil veículos, representa uma parcela de cerca de 62,5% do total do número de ônibus urbanos em circulação no Município, segundo o Relatório de Emissões Veiculares de 2015 da Cetesb, implicando uma contribuição dos cerca de 15 mil ônibus regulares, que operam sob permissão da SPTrans, no total de todas as fontes de emissão da cidade (móveis e fixas), um pouco inferior a esses 9,2%; na verdade, da ordem de 5,7%.

 

Essa estimativa é extremamente conservadora, no que concerne à contribuição da frota “não-SPTrans” e superestima a contribuição da frota de ônibus regulares sob a SPTrans. Ela considera que os ônibus regulares tem fatores de emissão semelhantes aos demais, o que está muito distante da realidade das ruas. Os ônibus da SPTrans, além de mais novos, por exigência contratual, tem fatores de emissão real típicos minimizados pela rigorosa fiscalização da SPTrans e da Cetesb, no âmbito do Programa de Melhoria da Manutenção de Veículos Diesel – PMMVD. Esses são avaliados quanto às emissões de material particulado, pelo menos duas vezes ao ano, independentemente da existência de um programa de inspeção veicular vinculado ao licenciamento anual.

 

Essa frota apresentava no programa da Controlar – suspenso em 2013 por uma decisão eleitoreira açodada do então prefeito Fernando Haddad em prejuízo do bem estar e da saúde de 20 milhões de habitantes da área metropolitana – níveis excepcionalmente baixos de reprovação na inspeção inicial, de menos de 3%; enquanto a média dos demais veículos a diesel da frota circulante superava os 30% de reprovação (dez vezes maior que a frota SPTrans). Sabe-se porém, que um veículo em más condições de manutenção pode emitir até 30 vezes mais material particulado do que os que são mantidos de acordo com as recomendações dos fabricantes.

 

Por outro lado, se essa mesma estimativa fosse realizada levando em consideração fatores de emissão mais apropriados, em relação à configuração tecnológica típica da frota de menor idade média da SPTrans, sua contribuição para o material particulado nas emissões totais de todas as fontes seria ainda menor, inferior a 3%; e se fosse considerada somente a parcela correspondente aos veículos em circulação, os ônibus da SPTrans representariam um subtotal estimado da ordem de apenas 7,5% – os caminhões contribuiriam com cerca de 45%, comerciais leves, 15% e os demais ônibus que não são da responsabilidade da SPTrans, cerca de 28%.

 

Ressalte-se, que essas contas consideram apenas as emissões de escapamento, pois não faz sentido no atual jogo de comparações, diante da polêmica da revisão do artigo 50, incluir as emissões de particulados de freios, pneus e desgaste de pavimento, pois essas são igualmente abundantes até mesmo nos campeões da sustentabilidade: os elétricos.


Na hipótese de eleger o vilão da poluição tóxica cancerígena do material particulado, os caminhões, especialmente os mais antigos, seriam os tais, seguidos dos ônibus não controlados pela SPTrans e dos comerciais leves. No caso do particulado, os automóveis entram com uma contribuição pequena, de cerca de 5%, e as motocicletas, somente 2%.

 

Além disso, segundo estudo recente do Instituto de Energia e Meio Ambiente –  IEMA, os ônibus têm reduzidíssimas e incomparáveis emissões de partículas por passageiro transportado – quatro vezes menores que as dos automóveis e três vezes menores que aquelas atribuídas às motocicletas, o que lhes confere a qualidade estratégica de “solução” no combate à poluição urbana – jamais de “problema” – independentemente do combustível utilizado, desde que esteja em boas condições de manutenção.

 

Esse, portanto, é o quadro negro aproximado da contaminação atmosférica urbana – da mesma cor das partículas de fuligem e das manchas no interior de nossos judiados pulmões. Isso sinaliza com luz vermelha para a emergência da redução das emissões do material particulado dos veículos a diesel, principalmente pela ação de um programa enérgico, e de âmbito estadual de inspeção anual de veículos a diesel (obrigatório por lei não cumprida pelo Governo do Estado há 20 anos), vinculado ao licenciamento anual.

 

A inspeção diesel pode reduzir em cerca de 20%, na média anual da frota, as emissões de particulados da parcela da frota inspecionada; sozinha, a inspeção veicular, só no Município de São Paulo, tem o potencial de reduzir em cerca de três vezes mais, a quantidade de emissões evitadas de partículas que ocorreria com a troca dos 15 mil ônibus, por veículos de emissão nula. Do ponto de vista matemático, isso poderia causar a redução da ordem de 4 a 6% nas concentrações ambientais de partículas finas, se não houvesse a costumeira e execrável evasão de 30% dos veículos do licenciamento anual e da inspeção – aliás, esse é um aspecto gravíssimo que carece de profunda discussão e urgente equacionamento por parte da sociedade e das historicamente passivas e complacentes autoridades governamentais e políticas.

 

A antecipação da entrada da tecnologia diesel convencional Euro 6 – com filtro de partículas com eficiência de 99,99% – é a segunda medida mais importante para que a frota a diesel nova seja praticamente de emissão nula de particulados. Além dessa medida, é parte essencial da estratégia de despoluição da cidade, a disseminação de um programa abrangente, nos níveis municipal e regional, de adaptação de filtros de partículas nos veículos e motores existentes, nos mais diversos nichos da frota, que permanecerão em circularão em nossas vias públicas, ainda por mais de 20 anos. As máquinas de construção civil e os motogeradores são também alvos típicos dessa medida.

 

Evidentemente, os programas municipais e estaduais de substituição dos ônibus urbanos regulares a diesel por alternativas mais limpas, são relevantes e muito bem-vindos para complemento da urgente e necessária estratégia de redução das emissões letais de material particulado.

 

Além disso, por trafegarem em áreas e corredores da cidade muito contaminados, por serem politicamente mais visíveis, e tendo um gerenciamento centralizado, muito bem controlado e organizado, tem o papel fundamental de puxar o cordão do conjunto de ações estratégicas integradas de maior alcance para um eficiente combate à poluição atmosférica urbana.

 

A frota regular de ônibus e as mudanças do clima
As emissões do transporte crescem mais rápido do que em outros setores, devido ao aumento da taxa de motorização da população; assim, o desencadeamento das políticas públicas de mitigação é absolutamente necessário, e precisa contar com o engajamento dos municípios.

 

No nível municipal, a redução das emissões de gases do efeito estufa – GEE pelos transportes pode ser feita por uma série de medidas, como a utilização de motores, combustíveis e veículos mais modernos e eficientes; a inspeção veicular ambiental também traz ganhos em termos de redução das emissões de CO2 da ordem de 5% em média, dada a típica redução do consumo global da frota inspecionada.

 

Outras medidas relevantes no âmbito municipal também podem convergir com a necessidade de mitigação das emissões de GEE, como o treinamento de condutores e/ou equipamento de veículos com programas para a direção ecológica, adoção de pneus ecoeficientes, implementação de políticas de mobilidade urbana que incentivem o transporte público coletivo e de massa de baixo potencial poluidor, integração entre diferentes modos de transporte, implantação de uma rede ampla de corredores avançados de ônibus com maior fluidez e alta capacidade de transporte (Bus Rapid Transit – BRT), as medidas diversas de restrição do uso do automóvel particular, como a redução da velocidade máxima permitida, pedágio urbano (cobrança pelo uso de vias tipicamente congestionadas em áreas centrais), criação de zonas de baixo carbono onde só circulam veículos não motorizados, elétricos ou movidos a combustíveis renováveis, redução de vagas e oneração do estacionamento de veículos particulares e o incentivo ao trabalho a distância (home-office), que tem potencial de redução de 10 a 15% dos deslocamentos motorizados no meio corporativo.

 

As emissões de CO2 da frota de ônibus regulares da SPTrans no Município representam cerca de 7,5% do total das emissões da frota e cerca de 3,5% se consideradas as emissões totais de CO2 da cidade, oriundas de todas as fontes – bem abaixo da contribuição dos automóveis e caminhões, com pouco menos de 30% cada, em relação às emissões totais da frota circulante (cada um destes, cerca de 4 vezes mais, comparado à parcela correspondente aos ônibus regulares sob a SPTrans). Aqui também não há em nenhuma hipótese qualquer indício de vilania ambiental climática por parte dos ônibus regulados pela SPTrans – que isso fique bem claro.

 

Em termos nacionais (1,6 bilhões de ton CO2eq) e mundiais (35 bilhões de ton CO2eq), as emissões atuais de toda frota de cerca de 15 mil ônibus regulares (da ordem de 1,4 milhões de ton CO2) representam menos de um milésimo das emissões nacionais e uma “gota no oceano” comparado às emissões totais mundiais. Não obstante, a palavra de ordem daqui em diante é mitigar as emissões fósseis, onde quer que elas estejam.


Importância do controle das emissões de carbono negro no combate ao aquecimento global
Alem das medidas convencionais de redução de emissão de GEE, cabe destacar a importância do controle das emissões de carbono negro ou fuligem (black carbon – BC), contida no material particulado, no contexto da mitigação do aquecimento do planeta. O BC absorve a radiação solar, não permite que a radiação refletida pela superfície terrestre retorne para o espaço e isso eleva a temperatura do planeta. Estudo divulgado pela Coalizão pelo Clima e Qualidade do Ar (CCAC), indica que o BC é o segundo poluente de maior impacto para as mudanças climáticas, atrás somente do CO2 e à frente do metano.

 

As estratégias de redução do material particulado do diesel, portanto, do ponto de vista global, terão influência relevante na desaceleração do aquecimento do planeta. Daí a importância e necessidade de inclusão de medidas de controle de emissões de particulados no rol de ações para a atenuação das mudanças climáticas.

 

Alem da própria substituição dos veículos a diesel por alternativas tecnológicas não-fósseis e menos poluentes, da inspeção veicular dos veículos a diesel e das demais medidas que favorecem a redução ou eliminação das emissões de fumaça preta, o desenvolvimento de programas nacional/estaduais/municipais de incentivo e/ou utilização obrigatória de filtros de material particulado (retrofit) em veículos a diesel em uso, de carga ou de transporte de passageiros de uso urbano, apresenta-se também como estratégia complementar extraordinariamente oportuna para os gestores do transporte sustentável urbano.

 

Cabe finalmente, comunicar a todos os parceiros, das mais distintas origens e matizes, envolvidos nessa discussão, que temos que nos manter unidos em torno da revisão do artigo 50 da Lei 14.933/2009, para que ela, ao fim e ao cabo, promova nos próximos anos de forma consistente e responsável a penetração gradual das tecnologias mais limpas alternativas ao óleo diesel, na frota de ônibus urbanos de São Paulo …. mas que esse avanço não pare por aí.


O próximo passo rumo ao Transporte Motorizado Sustentável
Neste momento, devem ser deixadas de lado de lado as diferenças e discussões apaixonadas sobre uma eventual culpabilidade dos ônibus urbanos regulares do Município nas (terríveis) dezenas de milhares de mortes e doenças causadas anualmente pela contaminação atmosférica; ao invés disso, devemos nos mobilizar para pressionar o Poder Público Municipal, de todas as formas, para que o alcance desses esforços nos leve muito além da insuficiente medida de substituição de ônibus urbanos regulares, rumo a uma nova forma de gestão integrada sustentável da mobilidade urbana motorizada, que inclua nesta fase inicial algumas medidas emergenciais muito simples, baratas e robustas, de curto e médio prazos, a fim de reduzir drasticamente os alarmantes níveis de concentração de partículas inaláveis finas na área metropolitana de São Paulo.

 

Sim! São alarmantes esses níveis de contaminação, e não apenas para o material particulado cancerígeno, mas também para o ozônio troposférico. Segundo as recomendações de 2005 da Organização Mundial da Saúde – OMS, a qualidade do ar para o material particulado em São Paulo, é cerca de o dobro daquela considerada adequada pela OMS. Aliás, cabe supletivamente ao Município de São Paulo, uma vez que não há uma forma adequada e transparente de comunicação pública direta e clara do risco cardiorrespiratório causado pela contaminação atmosférica aos paulistanos, regulamentar e prover Padrões de Qualidade do Ar Municipais próprios, convergentes com a ciência médica atual, expressa nas recomendações da OMS.

 

Isso tudo implicará necessariamente o simples acolhimento pelos parlamentares e pelo Poder Executivo, de TODAS as diretrizes recentemente apresentadas pelo Comitê do Clima do Município aos irmãos paulistanos, aos vereadores e ao Prefeito de São Paulo (conforme matéria já publicada no Diário dos Transportes). E leia a íntegra do documento aprovado pelo Comitê do Clima no site da ANTP. 

 

*Olimpio Alvares é Diretor da L’Avis Eco-Service, especialista em transporte sustentável, inspeção técnica e emissões veiculares; concebeu o Projeto do Transporte Sustentável do Estado de São Paulo, o Programa de Inspeção Veicular e o Programa Nacional de Controle de Ruído de Veículos; fundador e Secretário Executivo da Comissão de Meio Ambiente da Associação Nacional de Transportes Públicos – ANTP; Diretor de Meio Ambiente e Sustentabilidade da Sociedade Brasileira de Teletrabalho e Teleatividades – SOBRATT; consultor do Banco Mundial, da Comissão Andina de Fomento – CAF e do Sindicato dos Transportadores de Passageiros do Estado de São Paulo – SPUrbanuss; é membro titular do Comitê de Mudança do Clima da Prefeitura de São Paulo e coordenador de sua Comissão de Transportes e Energias Renováveis; colaborador do Conselho Nacional do Meio Ambiente – Conama, Instituto Saúde e Sustentabilidade, Instituto Mobilize, Clean Air Institute, World Resources Institute – WRI-Cidades, Climate and Clean Air Coalition – CCAC, do International Council on Clean Transportation – ICCT e do Ministério Público Federal; é ex-gerente da área de controle de emissões veiculares da Cetesb, onde atuou por 26 anos; faz parte da coordenação da Semana da Virada da Mobilidade.

**Artigo originalmente publicado no portal Diário dos Transportes com o título "Emissões comparativas dos ônibus urbanos regulares em circulação no município de São Paulo" 


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