Palavra de Especialista

30
abril
Publicado por admin no dia 30 de abril de 2014

Uirá Felipe Lourenço é servidor público, usuário de bicicleta e colaborador do portal Mobilize

 

 
O programa Asfalto Novo reflete o velho modelo rodoviarista ainda vigente no Distrito Federal. Caracterizado pela priorização do automóvel, o rodoviarismo foi abandonado há algumas décadas em cidades exemplares em mobilidade saudável. As cidades verdadeiramente modernas vêm restringindo o espaço dos carros e destinando-o para a circulação a pé e por bicicleta. Saem estacionamentos e viadutos, entram praças, calçadas e locais para lazer e convívio.

Anunciado como sinônimo de qualidade de vida, ao custo de 770 milhões de reais, o Asfalto Novo já recapeou inúmeras pistas da área central, mesmo aquelas com pavimento em boas condições. Enquanto isso, as calçadas, quando existem, continuam em estado de calamidade e não foram recapeadas. Para piorar, muitas calçadas e canteiros servem de estacionamento para carros e rampas de acesso são bloqueadas diariamente por carros estacionados.

Serviço de recapeamento: condições impecáveis aos motorizados

 

Péssimas condições das calçadas

 

Condições de acessibilidade: bloqueios diários no caminho


A propaganda governamental na EPTG ressalta a construção de ciclovias e a qualidade de vida, em contraste com a triste realidade da via, onde a ciclovia jamais saiu do papel e tampouco existem calçadas. Para completar o cenário na “Linha Verde”, os ônibus ficam congestionados, enquanto muitos motoristas invadem o corredor de ônibus e o acostamento. Ainda assim, anunciou-se mais um projeto rodoviarista: um viaduto na entrada de Taguatinga. E a ciclovia da EPTG, prometida há alguns anos, continua sem prazo de entrega.

Caos na EPTG (“Linha Verde”)

Mesmo as ciclovias construídas não significam mudança no modelo ultrapassado e apresentam falhas graves. Descontinuidade, com término abrupto em locais com alto risco de acidentes; falta de sinalização nos cruzamentos; falta de preferência aos ciclistas; ziguezagues e desvios no trajeto; falta de iluminação; problemas de drenagem; conflitos com pedestres; ausência de bicicletários. Para completar, faltam campanhas educativas de respeito e incentivo ao uso de bicicleta e fiscalização das reiteradas infrações motorizadas contra ciclistas, incluindo o bloqueio das novas ciclovias.

 

Realidade cicloviária no Distrito Federal: bloqueio de ciclovia e falta de sinalização em cruzamento

 

Curioso o fato de o governo local proclamar o Distrito Federal “referência nacional e internacional em ciclovias”. A propaganda recente afirma que a malha cicloviária se iguala à de Amsterdã e supera a de Copenhague. Esqueceram de comentar sobre a cultura ciclística e a qualidade das ciclovias e ciclofaixas. Naquelas cidades, mais de 30% dos deslocamentos para o trabalho são feitos de bicicleta. Por aqui, apesar da ausência de dados oficiais, pode-se afirmar que sequer chega a 0,1%. Lá, os cruzamentos são impecavelmente sinalizados e os ciclistas contam com preferência sobre os motorizados.

E nas capitais europeias o carro perde cada vez mais espaço, especialmente na área central, onde são caras e escassas as vagas de estacionamento. Aqui, a lógica ainda favorece de forma escancarada o automóvel, com vagas gratuitas em área pública (não há estacionamento rotativo pago) e muitos estacionamentos informais, que ocupam canteiros, calçadas e outros espaços livres. Locais propícios ao lazer e à convivência tornam-se espaços sem vida, degradados pela circulação de carros. Chegou-se ao cúmulo de o governo propor a criação de 10 mil vagas ao rei automóvel no coração da cidade, em plena área tombada. Definitivamente, a proposta de estacionamento subterrâneo na Esplanada dos Ministérios já nasce ultrapassada.

 

Estacionamentos informais invadem espaços públicos

 

O desafio na mobilidade urbana não se resume a obras. Mudanças culturais são fundamentais. Infelizmente, os investimentos no transporte coletivo e no uso de bicicleta ainda pressupõem como beneficiárias as classes desfavorecidas economicamente. Os gestores públicos ainda não se convenceram de que metrô, ônibus e bicicleta devem compor um sistema integrado e confiável a ser utilizado por todos, como forma alternativa ao automóvel. Emblemático que os governantes só usem o sistema de transporte público em inaugurações, quando os holofotes midiáticos se acendem. No dia a dia sombrio, ficam os usuários comuns reféns dos problemas de sempre: desconforto, insegurança e má-qualidade no serviço prestado.

 

A falta de sensibilização dos gestores públicos evidencia-se quando o próprio poder público desrespeita o espaço destinado a pedestres e ciclistas. Veículos a serviço do governo podem ser vistos com certa frequência sobre calçada, ciclovia e em outros locais proibidos. Passa-se, com essa atitude, a mensagem equivocada de que os motorizados têm prevalência sobre os que caminham e pedalam. O código de trânsito expressa exatamente o contrário: os motorizados devem zelar pela segurança dos não motorizados.

 

Mau exemplo do poder público

 

Sabe-se que a solução para o caos resultante da excessiva frota automotiva – que ultrapassa 1,5 milhão no DF – passa longe dos incentivos fiscais ao setor automotivo e da política de ampliação de vias e estacionamentos, que só contribuem para o aumento do caos urbano, num círculo vicioso que causa danos sociais, ambientais e econômicos. Aplicar recursos unicamente nos modos coletivos e saudáveis de locomoção é, sem dúvida, a alternativa mais sensata e racional. Aliás, a Política Nacional de Mobilidade Urbana, de 2012, expressa essa priorização, em detrimento do transporte individual motorizado. Falta, como de costume, pôr em prática, com planejamento e coerência, o que está previsto em lei.

 

Congestionamento: reflexo da política atrasada de incentivo ao transporte individual motorizado

 



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