Velo-city 2015: o fim do silêncio europeu sobre a América Latina e suas pessoas em bicicletas – Mobilize Europa
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Publicado por Guilherme Tampieri no dia 01 de julho de 2015

O que faz um evento internacional sobre bicicletas ser ou não anunciado por associações, revistas, organizações e jornalistas europeus? Essas é uma pergunta ainda sem respostas, mas a participação brasileira no Velo-city contribuiu, no mínimo, para que os europeus não fiquem mais em silêncio sobre algo que acontece no Cone Sul.

O Velo-city 2015 em Nantes, na França

Entre o final de fevereiro e início de março, aconteceu em Medellín, na Colômbia, o IV Fórum Mundial da Bicicleta (FMB) e as principais associações e coletivos europeus que discutem o uso da bicicleta no velho continente ficaram em silêncio sobre esse evento. Naquele momento, não menos que 4.000 pessoas passaram quatro dias discutindo o uso da bicicleta como modo de transporte e assuntos correlatos.

Nesse início de junho, três meses depois, em Nantes, na França, aconteceu o Velo-city. Segundo revistas e jornais europeus, ele é o maior evento sobre o uso da bicicleta do mundo. Uma pergunta inicial que pode ser posta é: maior em quê? Sem dúvidas, não é no número de participantes. Na edição 2015, não mais que 1.600 pessoas estiveram presentes ao longo, também, de quatro dias.

Em número de exposições, o Velo-city não ganha muito do Fórum Mundial da Bicicleta. Em termos de conteúdo e os processos para realização, ambos têm seus problemas e logros. Todavia, esse texto não se trata de uma competição entre o Fórum Mundial e o Velo-city, mas de compreender como o público majoritário (europeus) que esteve presente neste se relacionará com os que criaram o FMB: brasileiros e brasileiras.

Dessa forma, comecemos pelo contexto territorial: a bela Nantes. Abaixo, alguns dados que ajudam a compreender melhor o porquê dessa cidade às beiras do rio “La Loire” ter sido escolhida para hospedar o Velo-city.

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No balão, a mensagem “Vélo” (bicicleta)

Nantes é uma cidade que possui pouco mais de 5% de pessoas usando bicicleta em seus deslocamentos diários, segundo dados de uma pesquisa feita na cidade em 2012. O resto dos deslocamentos são feitos da seguinte forma:

–        27% das pessoas vão a pé

–        16% no transporte coletivo

–        52% de carro.

 

Sim, mais da metade das pessoas usam carro em Nantes, como na maior parte da França e da Europa em geral, ainda que a cidade seja muito agradável para se pedalar.

 

Para ajudar na reversão desse quadro de motorização generalizada, em 2012, a prefeitura de Nantes tomou uma decisão inédita na França: aumentar sua área central cuja velocidade máxima era 30km/h de 16 para 75 hectares e criar uma Zona de Tráfico Limitado de 8 hectares no hiper-centro! A chamada ZTL, a primeira do país, tem por objetivo promover o andar a pé, a bicicleta e o transporte coletivo. Dedicada aos pedestres, ciclistas e usuários do transporte coletivo e sempre com limite de 30km/h, a ZTL também autoriza a circulação de veículos motorizados individuais de entrega, taxis, dos moradores locais, clientes dos hotéis e profissionais da saúde.

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Manutenção de bicicletas compartilhadas feitas por um ciclista

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Jornal dizendo “Maré gigante de ciclistas”, após a pedalada do Velo-city

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contador de ciclistas

Além disso, a cidade está:

-construindo dois grandes eixos  com ciclovias (norte-sul e leste-oeste) que atravessarão Nantes;

-generalizando as zonas 30 para todos os bairros, incluindo a periferia;

-implementando estruturas cicloviárias em todas as grandes vias da cidade.

Em um ano, a quantidade de pessoas pedalando nas ZTL dobrou, mas o caminho de Nantes ainda é longo e cheio de trabalhos a serem feitos para que a cidade consiga ter cada vez mais ciclistas e ser de fato atrativa ao uso da bicicleta no contexto Europa. Da resistência dos motoristas a perderem espaço nas cidades até o roubo de bicicletas, Nantes, como qualquer cidade do mundo que possui um percentual alto de motorização, encontrou e continua tendo dificuldades para promover o uso da bicicleta como modo de transporte.

A realização do Velo-city, sem questionar os processos para tal, é uma maneira da cidade mostrar ao mundo o que tem feito para estimular seus cidadãos e cidadãs a usarem, em todas as idades, a bicicleta.

O Velo-city e o Brasil

Pela primeira vez na história, mais de 40 brasileir@s participaram do Velo-City e, mais que isso, puderam mostrar aos presentes um pouco do que temos feito por aqui para promover o uso da bicicleta em nossas cidades e no Brasil.

A participação brasileira iniciou-se com a reunião da WCA – World Cycling Alliance (Aliança Mundial pró Ciclismo), cujo um dos membros da BH em Ciclo participou representando a rede Bike Anjo. A reunião também contou com a presença da Transporte Ativo.

A Aliança nasceu no Velo-city de Adelaide, na Austrália, em 2014, da necessidade de unir diferentes países do mundo, nos diversos continentes, para se posicionarem em favor das bicicletas e para criar estratégias de desenvolvimento que englobem esse modo de transporte, a justiça social, a inclusão e o trabalho das populações mundo afora. Seus principais objetivos são:

  •        Discutir e atuar em favor do uso da bicicleta e triciclos como modo de transporte no âmbito internacional, particularmente dentro da ONU, OCDE, Banco Mundial e outros.
  •        Promover e apoiar o intercâmbio mundial de conhecimentos, expertises e colaboração entre associações e organizações pró ciclismo.

Para além dessa importante participação brasileira, foram mais de 12 projetos do Brasil aprovados com atividades na conferência, entre moderações de painel e exposição de banners/posters. Os quatro membros da BH em Ciclo apresentaram três trabalhos na conferência.

Como outro importante marco da nossa participação, destaca-se que fomos o único país a fazer transmissões ao vivo (que não de emissoras oficiais) realizadas direto do evento.

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Transmissão ao vivo

Além disso, ao final do Velo-city, cerca de 20 pessoas de vários países se reuniram para começar pensar estratégias para se criar uma aliança latino-americana para promoção do uso da bicicleta no Cone Sul de forma integrada e articulada. Do Brasil, participaram seis pessoas, sendo duas da BH em Ciclo. Ao final da conversa, foi criado um ‘petit comite’ para levar adiante essa ideia. Um integrante da BH em Ciclo faz parte do grupo.

A BH em Ciclo no Velo-city

Além do que foi acima falado, nesse imenso universo que foi o Velo-city 2015 com inúmeras oportunidades, a BH em Ciclo foi representanda por quatro de seus membros que apresentaram três trabalhos:

1) Desmitificando os morros: a evolução do cenário da bicicleta em Belo Horizonte (o artigo completo será disponibilizado em breve);

2) O uso da bicicleta como modo de transporte em cidades montanhosas para pessoas com mais de 30 anos – Foto do banner;

3) Comparação entre o sistema de bicicletas compartilhadas de BH, o BikeBH, e o de Paris, o Vélib’.

O primeiro teve por objetivo mostrar como é possível pedalar em cidades montanhosas como Belo Horizonte e que o mito de que é impossível usar a bicicleta como modo de transporte não passa de uma construção social feita por quem não teve tal experiência.

O segundo é o resultado de uma pesquisa com pessoas com mais de 30 anos que foram divididas em dois grupos: sedentários e ativos. Atletas e pessoas com sérios problemas cardíacos foram excluídos. Ambos grupos estudados foram colocados para pedalar a mesma distância (5,2km) e fizeram testes antes e depois da pedalada para apresentarem suas informações físicas. A conclusão foi de que a tecnologia das bicicletas permite seu uso por qualquer pessoa (salvo raras exceções com problemas grave de saúde), desde que de forma gradativa e respeitando os limites do corpo.

O terceiro é uma análise entre alguns dados relativos ao contexto geográfico, população, sistema cicloviário e, com ênfase, no sistema de bicicleta compartilhada de Paris e de Belo Horizonte. Aparentemente, ambas as cidades possuem contextos muito diferentes, mas com a análise foi possível mostrar que existem relações importantes e que podem ser melhor estudadas entre ambas cidades. Além disso, Paris, como Belo Horizonte, tem uma gestão pública que quer aumentar o uso da bicicleta e para tal tem traçado metas ousadas. Todavia, existe uma clara falta de conexão entre o texto usado nos documentos que contém as metas e vontades das gestões e o atual quadro de recursos humanos e a disposição política de lograr os objetivos incluídos nestes documentos.

O mundo no Velo-city

Uma das marcas do Velo-city é a possibilidade de pessoas e instituições do mundo todo se encontrarem* e discutirem o uso da bicicleta em suas cidades, estados e países. Nesta edição não foi diferente. Além dos papos de corredor, tivemos condição de participar de palestras, workshops e outras atividades que envolviam atores fora do circuito Europa do Norte (mais a França) da bicicleta. Ou seja, ouvimos pessoas dizerem como têm sido a promoção e o fomento do uso deste modo de transporte em locais que não estamos habituados a ter acesso, mesmo que estes contenham altos índices de uso da magrela. Um exemplo disso é o Japão. Também tivemos o prazer de ver gente de Barcelona, Porto, Lisboa ,Glasgow, cidades da Índia e Austrália e da América do Sul falando de seus logros e dificuldades para colocar a bicicleta na agenda política, social, econômica e ambiental de seus municípios.

o segredo que pode mudar o mundo

o segredo que pode mudar o mundo

A história em todas essas cidades, das com índices ruins de uso da bicicleta (como BH, Londres, Paris, Barcelona, Porto, Glasgow, Roma e outras) até os exemplos mundiais (Copenhague, Amsterdã, Tóquio, Estrasburgo, Chambery, Bremen), tem um nível de semelhança que é um alento para quem está começando esse processo de mudança do modelo urbano de suas cidades.

Em todas elas, as pressões contrárias ao uso da bicicleta no início eram enormes, bem com a falta de vontade política para fazer uma reviravolta na mobilidade urbana local. Isso significa a mesma coisa que “tirar espaço dedicados exclusivamente a carros e usá-los de forma mais sustentável, justa e democrática, a partir da implementação de medidas de incentivo ao transporte coletivo, do andar a pé e do uso de transporte ativos (não motorizados) como a bicicleta, patinete, skate e patins.

Em várias, a perda de vidas foi o fator que motivou o início da mudança. Em outras, a vontade de retomar os espaços públicos e usá-los de forma mais inteligente, divertida, limpa e universal. Há ainda as cidades que usaram o argumento ambiental se remodelarem. A razão econômica também foi válvula propulsora em várias outras, mas, sem dúvida, está presente de forma secundária, terciária ou em algum nível em todas (todas!) as cidades que se reinventaram para dar espaço a uma mobilidade urbana mais sustentável. A saúde (ou falta dela) é outro forte argumento presente nesse processo. Os custos não financeiros de uma cidade que privilegia o uso do transporte motorizado individual (carros e motos) é caro demais para, especialmente, nossas crianças, idosos e outros públicos mais vulneráveis fisiologicamente.

Em Belo Horizonte, conseguimos ver pequenos pedaços de todos esses argumentos tentando serem juntados para formar de fato uma política pública voltada à promoção do uso da bicicleta. Todavia, ainda estamos num nível em que o discurso e a prática estão distantes demais entre si para nos fazer ter condições de projetar algo para o futuro (curto, médio e longo).

Existem, sim, boas coisas sendo feitas na cidade e que podem e precisam ser reconhecidas. Entretanto, não podemos dar espaço para a imagem de uma cidade publicizada local, regional e até internacionalmente e quem tem sido premiada por isso. É preciso continuar reinventando a Belo Horizonte em que nós vivemos, mostrando que o maior dos prêmios que a cidade pode querer receber é ter mais gente optando por transportes sustentáveis e não mais pelo carro e a moto. Ou seja, é optar por um outro caminho que não o atual.

*a taxa de inscrição do Velo-city é, por si só, um fator de enorme segregação e exclusão mesmo para quem mora na cidade, região, país onde ele é realizado.



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