Cidade Ativa

11
março
Publicado por Cidade Ativa no dia 11 de março de 2019

*Texto escrito por Rafaella Basile*

Quem já se interessou pelo tema da mobilidade sabe que o advento do carro trouxe diversas mudanças importantes relacionadas ao ambiente construído das cidades e à vida das pessoas. Essas transformações já foram e ainda são amplamente discutidas nos mais diversos campos de estudo. Na história, por exemplo, ele serve como recorte do período da industrialização, na engenharia ele é relevante na tecnologia de motores, e no planejamento urbano é estudado pelo seu papel no processo de urbanização. Da sua invenção até os dias de hoje, o carro foi ganhando espaço e tornou-se cada vez mais presente em ruas e prédios, sendo incorporado na vida cotidiana e na imaginação das pessoas.

Anos após a adoção de um modelo em que o carro pudesse transitar pelas cidades e entre elas, diversos problemas emergiram sinalizando a necessidade de repensarmos nossas cidades, bairros e ruas para serem menos dependentes dele. Nesse contexto, precisamos entender como rever o espaço que ele ocupa na dimensão física tal qual na simbólica. Mais do que um produto ou um meio de transporte, o carro é hoje um estilo de vida disseminado nos quatro cantos do mundo. Tanto que, para expressar o significado simbólico e social em torno dele, foi difundido em muitas línguas diferentes o termo ‘cultura do automóvel’ com seus diversos contornos temporais e geográficos. Aqui, vamos discutir três abordagens do que seria essa ‘cultura do automóvel’: primeiro, compreender o carro como produto e seu papel no consumo, seguido pelo seu significado social e, então, sua relação com a nossa humanidade.

Crédito: Cidade Ativa

1.    Carro é um produto multifuncional

Podemos olhar para o carro, antes de tudo, como um produto consumido por pessoas. No entanto, ele possui algumas singularidades, principalmente quando consideramos a dimensão multifuncional e experimental que permite ao usuário explorar seu uso e até criar novos. Considerando essa perspectiva, o carro foi, desde sua criação, um produto que possibilitou a inovação no cotidiano social [1], sendo suas possibilidades ampliadas ao longo do tempo juntamente com o uso e a expansão do consumo para uma maior variedade de grupos.

Inicialmente, o carro era restrito às classes mais ricas e usado apenas para o lazer, levando pessoas da cidade para o interior aos finais de semana. É só no início do século XX que o carro se torna mais acessível à classe média e que a má qualidade do transporte público ajuda a construir uma narrativa do automóvel como meio de transporte. A ampliação das possibilidades sociais do carro para os deslocamentos diários atinge seu auge nas décadas de 1950 e 1960 na maioria dos países desenvolvidos [2], confirmando o caráter multifuncional e experimental do carro. Nessa nova configuração, não apenas o carro ganhou novos usos como ele desencadeou a criação de diversos outros produtos e serviços para suportar suas necessidades: shoppings, cinemas ‘drive-in’, grandes centros de compra (supermercados e outros), restaurantes com drive thru, postos de gasolina, motéis e outras acomodações turísticas, e impulsionou o desenvolvimento imobiliário em áreas afastadas do centro.

Se considerarmos o carro como um produto no qual o usuário foi aos poucos moldando sua vida social, nos aproximarmos da abrangência de atividades realizada no e pelo carro nos dias atuais, como: dormir, comer, trabalhar, fazer sexo, assistir a um filme, ouvir as notícias, se aquecer ou se refrescar, proteger-se da chuva, guardar objetos, ler, colocar o bebê pra dormir, tocar música em uma festa e assim por diante. Mais do que transportar pessoas, o carro foi sendo adaptado ao longo do tempo pela indústria automobilística para permitir essa nova diversidade de hábitos e atividades, numa interação social entre o design e os diferentes usuários. A possibilidade de expansão de usos é fundamental para entender o entusiasmo criado em torno do carro uma vez que, quanto mais atividades os usuários podem fazer com um produto, mais popular ele se torna [3].

2.    O significado social do carro

O carro carrega significados para além de sua representação inicial como produto, e que estão em constante mudança ao longo do tempo e dos contextos em que está inserido [4]. Como descrito anteriormente, no início ele simbolizava o “brinquedo do homem rico”, sendo posteriormente representado como um veículo de transporte. Com a popularização do carro, vários significados diferentes emergiram dele, com identidades e papéis sociais atribuídos ao seu usuário. É por isso que estudiosos, como John Urry, sugeriram que deveríamos “abandonar a idéia do carro como uma coisa, um simples objeto de produção e consumo, e considerá-lo como um sistema de práticas sociais e técnicas interligadas que reconfigurou a sociedade civil” [5].

Essa construção social de significados que indica a posição de classe de um indivíduo através de seu carro foi amplamente estudada nos Estados Unidos. No país, na década de 1920, a única razão que impedia as pessoas de ter um carro era sua renda. A restrição de um automóvel novo entre famílias de baixa renda impulsionou o mercado de carros usados, no qual os proprietários foram encorajados a substituir seus veículos por um modelo mais caro e  com mais acessórios. Num contexto de mercado saturado, onde a indústria automobilística teve que incentivar a substituição de modelos, passou-se a ressaltar a importância da aparência, design, beleza e inovação tecnológica, criando uma hierarquia de preços que refletia o valor do produto [6]. Os proprietários de carros estavam cientes dessa diferenciação de valor, baseada em estética e acessórios, e na distinção social que lhes era atribuída.

Nas décadas seguintes, a posse de um carro se tornaria sinônimo de “boa vida” e status. Para a classe trabalhadora, ele passou a ser a ferramenta que lhes permitia ter lazer e escapar dos aspectos desumanizantes do seu dia-a-dia, sendo visto uma solução para certos problemas sociais [8]. Uma vez que o carro criava a liberdade de acessar qualquer lugar da cidade – e fora dela -, ele permitia negar a segregação de classe, criando um sentimento de mobilidade social no qual seria possível melhorar seu status. É nesse contexto que surge a ideia de mudança anual do modelo do carro, com pequenas transformações no design e acessórios, estratégia que convencia os usuários de que seus carros estavam melhorando porque pareciam mais com carros da burguesia e, assim, de que suas vidas também estavam melhorando.

Quando problemas relacionados ao trânsito nas cidades, como congestionamento e falta de vagas, começaram a aumentar em muitas cidades, a resposta foi implementar políticas para acomodar o carro, mantendo o status quo do seu significado social. A mudança simbólica aconteceria na década de 1960 com a constatação do automóvel como um grande problema social, revelado pelos movimentos ambientalistas e de consumo [9]. Ainda assim, com o surgimento de um novo padrão de consumo, que é seguido pela indústria automobilística, o carro passa a simbolizar um modo de vida. Com uma oferta variada de modelos, o indivíduo passa a escolher um carro que expresse seu estilo de maneira mais personalizada. Não mais uma expressão de distinção de classe de um grupo, o carro se torna uma marca da identidade do indivíduo em meio a muitos tipos de modo de vida.

3.    Carro e a humanidade

Outro aspecto a ser debatido com relação à cultura do carro é a humanidade do automóvel, ou seja, o grau em que ele se tornou parte integrante do ambiente cultural dentro do qual nos vemos como humanos. Embora muitos estudos enfoquem em sublinhar as conseqüências negativas da relação homem-carro, poderíamos entender de maneira mais profunda o papel do carro na mediação do que nos define como seres humanos, uma vez que criamos o ambiente do carro como nosso próprio ambiente.

Confrontando a ideia do carro como a antítese da natureza, o estudioso Daniel Miller apontou para o fato que o ato de dirigir se tornou tão natural que sua prática diária não requer nenhuma mediação consciente [10]. Ao dirigir, a conexão criada entre o carro e o humano vai além da dimensão mecânica e chega à psicológica e emocional. Um certo esquecimento do eu é possível quando o controle do automóvel se torna inconsciente, numa relação próxima entre movimento e emoção. “Parecia vivo sob minhas mãos, alguma criatura de metal criada pelo vento e pela velocidade … Corria como o vento. Eu corri como o vento. Foi como se eu me tornasse o carro, ou o carro se tornasse eu, e que era o que não importava mais” [11]. Nesse sentido, podemos considerar que, assim como o carro seria uma extensão de nós mesmos, definindo quem somos e nossa humanidade, também o carro poderia ser humanizado.

No espectro do carro definindo nossa individualidade, Daniel Miller ilustrou o estudo que ele realizou em Trinidad, onde ele “logo aprendeu que os indivíduos eram localizados mais frequentemente através do carro estacionado em frente a uma casa do que pelo número da casa” [12]. Através de personalizações internas e externas, as pessoas passaram a construir intimidade na relação homem-carro e reforçaram a importância dele como um elemento da sua identidade. No outro espectro, a humanização do carro seria enfatizada nas práticas de cuidado de carro – lavagens frequentes de carros, pequenos reparos, ou mesmo normas sobre como fechar a porta do carro sem bater – mas também através da personificação – nomeação de veículos, criação de personagens de carros em filmes, atribuição de qualidades e sentimentos humanos. Em ambos os cenários, há um investimento emocional na criação de afeto, de modo que o carro desempenha um papel importante na forma como nos vemos, como vemos o outro e em como nos relacionamos, estando integrado com a sua humanidade nas redes públicas de sociabilidade e também na nossa imaginação.

Ao considerar a intimidade e o afeto, fica mais claro até que ponto o carro e todas as suas externalidades, como trânsito, lesões, poluição, são realizadas na vida cotidiana das pessoas. Nos conflitos comuns dentro de um ambiente naturalizado, o carro representa uma ferramenta pessoal e única para lidar com a frustração e o fracasso do dirigir. É dentro deste pequeno e confinado mundo próprio chamado carro que as pessoas podem enfatizar sua humanidade através da experiência de dirigir. Segundo Daniel Miller, o elemento chave para entender a ambiguidade dentro da frustração e do refúgio seria a capacidade de um carro se desligar do mundo. Aqui, a música desempenha um papel vital em criar dentro do carro “mais um espaço em casa que a própria casa” [13], tão confortável e privado quanto o sofá da sala de estar. Imersos em um ambiente feito para o carro e considerado como nosso próprio ambiente, o modo de expressar nossa humanidade, ou seja, existir e não existir, se dá através do carro.

As várias tentativas e perspectivas diferentes para explicar o entusiasmo, o afeto e a identificação dos seres humanos com carros revelam a complexidade que está enraizada nessa relação. Grande parte da literatura sobre a cultura do carro busca compreender a inserção social e cultural do automóvel em nossas sociedades como forma de superá-lo. Tendo moldado profundamente nossos ambientes e vidas, a cultura automobilística traz preocupações e contradições que nos fazem imaginar como seria um mundo sem carros e refletir seriamente sobre uma transição para práticas mais sustentáveis.

Dentro do estado da arte do automóvel, emergem dimensões ambivalentes em relação à consciência das questões ambientais de um lado, e os compromissos de um modo de vida do outro. O que está em jogo na persistência da cultura automobilística é o sentimento de “inevitabilidade do carro” aninhado nas práticas, reconhecimentos e emoções de nossa humanidade. No caminho para a fraqueza ou superação, enquadrar o carro como peça integrante da cultura humana é fundamental para entender essas significações e encorajar um uso mais racional que priorize e dê espaço também outras práticas.

Crédito: Cidade Ativa

Referências:

[1] Bladh, Mats. “Origin of Car Enthusiasm and Alternative Paths in History.” Environmental Innovation and Societal Transitions, 2018.

[2] Parment, Anders. “Auto Brand”. Kogan Page, 2014.

[3] Bladh, Mats. “Origin of Car Enthusiasm and Alternative Paths in History.” Environmental Innovation and Societal Transitions, 2018.

[4] Gartman, David. “Three Ages of the Automobile: The Cultural Logics of the Car”. Theory, Culture & Society, vol. 21, no. 4-5, 2004, pp. 169-195.

[5] Urry, John (2000) Sociology beyond Societies: Mobilities for the Twenty-first Century.

[6] Flink, James. “The Car Culture”. The MIT Press, London;Cambridge (Mass.), 1978.

[7] Bourdieu, Pierre (1984) Distinction: A Social Critique of the Judgment of Taste. Cambridge, MA: Harvard University Press

[8] [9] Gartman, David. “Three Ages of the Automobile: The Cultural Logics of the Car”. Theory, Culture & Society, vol. 21, no. 4-5, 2004, pp. 169-195.

[10] Miller, Daniel (ed.). “Car Cultures”. Oxford: Berg, 2001.

[11]  Lesley Hazleton citada em Sheller, Mimi. “Automotive Emotions: Feeling the Car”. Theory, Culture & Society 21, 2004, p. 11.

[12] [13] Miller, Daniel (ed.). “Car Cultures”. Oxford: Berg, 2001.

 



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