Programa Bicicleta Brasil. Agora vai?

Legislação faz um ano em outubro, mas não saiu do papel. Agora um grupo gestor no Congresso, com participação de 40 organizações, começa a debater sua regulamentação

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Fonte: Agência Senado  |  Autor: Ana Luisa Araujo/Nelson Oliveira*  |  Postado em: 01 de outubro de 2019

Desde o Programa Bicicleta Brasil, de 2004, poucos

Desde o Programa Bicicleta Brasil, de 2004, poucos avanços

créditos: Marcos de Sousa/ Mobilize

Vinte mil mortos. Esse é o saldo negativo direto, em vidas humanas, da falta de segurança para os usuários de bicicletas no Brasil em quase 15 anos.

 

No rol de fatores que podem explicar tamanha fragilidade estão, evidentemente, as falhas nas políticas públicas voltadas ao desenvolvimento e sustentação do transporte cicloviário no Brasil durante mais de uma década. Entre as falhas, é possível mencionar tanto os erros de planejamento e a má execução quanto a própria ausência dessas políticas — ou até a falta de um padrão mínimo para elas nas várias regiões do Brasil.

 

Conforme o Ministério da Saúde, 1.306 ciclistas morreram vítimas de acidentes no Brasil só em 2017. E o quadro não tem se alterado significativamente desde 2004, quando o hoje extinto Ministério das Cidades lançou o programa Bicicleta Brasil, reeditado em bases ampliadas na forma de uma lei aprovada em 2018 pelo Congresso e sancionada logo depois pelo presidente da República. 

 

Dados do Sistema de Informação sobre Mortalidade (SIM) mostram que, há 15 anos, o total de ciclistas mortos havia sido de 1.389. No intervalo até 2017, último dado disponível, sofreu algumas variações para baixo e para cima, chegando a 1.668 em 2006, mas situando-se na média anual de 1,4 mil. 

 

 

Visões antagônicas

“Há uma incompatibilidade de discursos de mobilidade entre o rodoviarismo e o cicloativismo. Esta disputa de discursos fica evidenciada no governo federal, com avanços para visão cicloativista a partir de 2004, com o Programa Bicicleta Brasil, e retrocessos a partir de ano de 2009 com fortalecimento da visão rodoviarista e estímulo econômico e fiscal para compra de automóveis pelo governo federal, com destaque para a diminuição do imposto sobre produtos industrializados (IPI)”, diz o estudo Cidades Cicláveis, publicado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea).  

 

De acordo com o texto, circulam pelo país cerca de 50 milhões de bicicletas contra 41 milhões de carros. Mesmo diante dessa diferença expressiva, não há boa cobertura de ciclovias ou ciclofaixas nas cidades brasileiras. 

 

Obrigados a pedalar junto aos automóveis, sem medidas de segurança, os ciclistas estão submetidos ao perigo de trafegar em vias nas quais se pratica, legal ou ilegalmente, a alta velocidade, e ao desrespeito latente, e muitas vezes explícito, dos condutores de carros, motos, caminhões e ônibus.

 

Programa Bicicleta Brasil

A Lei 13.724/2018, que instituiu o Programa Bicicleta Brasil (PBB) é uma tentativa de melhorar as condições gerais da mobilidade urbana brasileira, sobrecarregada pelo fluxo intenso de veículos motorizados. A proteção aos ciclistas não é mencionada diretamente em seus artigos, a não ser quanto ao estabelecimento de vias intermunicipais “voltadas para o turismo e o lazer”. 

 

O PPB tem como objetivos mais concretos aumentar a construção de ciclovias e a marcação de ciclofaixas e faixas compartilhadas (temporárias) nas pistas de rolagem. Mas não apenas isso: o texto prevê a implantação de sistemas de aluguel de bicicletas a baixo custo em terminais de transporte coletivo, onde também se pretende instalar bicicletários. 

 

A margem das vias e estacionamentos são locais destinados aos paraciclos, conjunto de suportes simples para prender bicicletas. Campanhas de incentivo ao uso da bicicleta estão igualmente previstas, assim como a instalação de equipamentos de apoio, como banheiros públicos e bebedouros em pontos estratégicos.

 

A legislação está completando um ano em outubro e não saiu do papel até o momento, embora o governo já esteja anunciando o início de discussões com vistas à sua regulamentação, que terá de levar em conta o apoio da esfera federal às ações a serem desenvolvidas por estados, municípios, organizações não governamentais e empresas privadas. Para participar do PBB, ONGs e empresários terão de se engajar em parcerias ou contratos público-privados. 

 

Em última análise, regulamentar o PBB é dar cumprimento à Política Nacional de Mobilidade Urbana (Lei 12.587/2012), que tem entre suas diretrizes priorizar os modos de transportes na~o motorizados sobre os motorizados e os servic¸os de transporte pu´blico coletivo sobre o transporte individual motorizado. 

 

Grupo gestor

Nos dias 15 e 16 de outubro, o grupo gestor criado pela Secretaria Nacional de Mobilidade Urbana e Serviços Urbanos (Semob) do Ministério do Desenvolvimento Regional, promoverá a primeira oficina para debater e propor medidas e ações necessárias a converter a política pública em realidade. A reunião terá lugar na sede da Confederação Nacional dos Municípios (CNM), com a participação de 40 organizações ligadas ao tema, incluindo a União de Ciclistas do Brasil (UCB) e a Frente Nacional de Prefeitos.

 

Além das oficinas, está prevista cooperação técnica durante 24 meses entre a Semob, a UCB e a Associação Bike Anjo.

 

 “O acordo prevê a realização de ações para apoiar a implementação, estruturação e operação do PBB e ações de apoio aos municípios e estados na área de mobilidade por bicicleta e nos planos de mobilidade urbana”, esclareceu a Secretaria, por meio de nota técnica enviada por sua assessoria de imprensa.

 

O PBB é mais exemplo de política pública aprovada de forma unilateral pelo Legislativo — seja porque o Executivo deixou de cumprir seu papel, seja porque os parlamentares entendem que uma lei tem mais chance de se impor e seguir vigorando do que uma portaria ministerial. 

 

Quando da aprovação da matéria no Senado, em setembro de 2018, o relator, senador Eduardo Braga (MDB-AM), demonstrou otimismo: “Com a implantação do PBB, cidades que já desenvolvem ações para valorizar o transporte por bicicleta contarão com maior apoio, particularmente financeiro, e aquelas que ainda não o fazem se sentirão motivadas a desenvolver projetos como este”.

 

Sem incentivos

O que se conhece dos resultados obtidos pela versão administrativa do programa é muito pouco. Auditoria do Tribunal de Contas da União (TCU), mencionada em estudo sobre mobilidade elaborado pela Câmara dos Deputados em 2015, indica que os programas para a mobilidade, a cargo do Ministério das Cidades, não obtiveram êxito em diminuir a prioridade para os veículos motorizados individuais. 

 

O aumento da frota de carros continuou a receber incentivos fiscais, ao passo que a execução orçamentária se mostrou sempre abaixo do planejado. Ou seja, a maior parte das verbas previstas no Orçamento dificilmente se converteu em obras.

 

Além da escassez de recursos, um dos grandes "pepinos" a serem descascados pelo grupo de regulamentação é o da capacitação técnica de prefeituras, fundamental para que bons projetos sejam levados a execução. 

 

Problema comum no Brasil, a ciclovia que, na linguagem popular, “leva do nada ao lugar nenhum”, decorre de trajetos não pensados para se ligarem a outras ciclovias e aos demais modais de longa distância, como o ônibus e o metrô. O ideal para a bicicleta, dizem os técnicos, são as distâncias de aproximadamente cinco quilômetros, trate-se de trecho único ou conexão a sistemas mais abrangentes. 

 

Malha cicloviária

Estudo da Consultoria Legislativa da Câmara corrobora a avaliação de que a malha cicloviária no Brasil tem crescido aos trancos e barrancos, por causa dos projetos equivocados e da má qualidade de obras. Mas tem crescido — embora fosse melhor crescer com mais lógica e qualidade. 

 

Em prefácio ao estudo Mobilidade por Bicicleta no Brasil, de 2016, o jornalista e ambientalista André Trigueiro observa que a implantação de ciclovias tem dependido muito de pressões locais e não necessariamente do pro-ativismo de prefeitos. 

 

Foi o que aconteceu em 1993 ao então prefeito de São Paulo, Paulo Maluf, segundo linha do  tempo publicada pelo jornal Folha de S. Paulo: depois de um protesto de ciclistas noturnos e do Greenpeace, prometeu construir 300 km de ciclovias, mas acabou entregando só 29 km, sendo 25 km deles em parques. 

 

O último levantamento do site Mobilize indica uma malha de 2.542,6 km, no total de 19 capitais, mas essa extensão é maior, ainda que não se contabilizem as vias próprias em cidades grandes, como Uberlândia (MG), que abriga 691,3 mil habitantes, e médias, como Macaé (RJ), onde habitam 256,6 mil pessoas. 

 

O próprio Mobilize cita levantamento publicado pelo site G1 apontando um total de 3.291 km nas 27 capitais — apenas 3,1% da malha viária total das cidades. Em 2014, a malha cicloviária das capitais era de 1.414 km, o que indica um crescimento de 133%.

 

Malha cicloviária total do país é desconhecida. Na cidade de SP, há cerca de 500 km de vias próprias para o ciclismo. Foto: Rovena Rosa/Agência Brasil 

 

Diante do caráter esporádico de ações que promovam o uso da bicicleta, acentuado a cada mudança de governo, as oficinas e o acordo de cooperação técnica entre governo e ONGs surgem como a esperança de que o tratamento da questão possa evoluir para um conjunto de providências sistemáticas e continuadas. 

 

Financiar o PBB

O maior detalhamento das fontes e formas de financiamento do Bicicleta Brasil, que prevê genericamente o abastecimento com dotações específicas das três esferas de governo, recursos da contribuição Cide-combustíveis e de organizações privadas vai demandar esforço do grupo. 

 

Segundo o Ministério da Economia, a Cide-combustíveis destinada aos municípios somou R$ 1,05 bilhão entre 2016 e 2018, uma média de R$ 352 milhões anuais, ou R$ 29,4 milhões mensais. A média mensal em 2019 até julho se situou em R$ 22,08 milhões, projetando uma arrecadação anual de R$ 264,9 milhões, se nada mudar para melhor. 

 

Para termos uma ideia do que esses números significam, basta saber que apenas o novo plano cicloviário da cidade de São Paulo prevê gastos de R$ 325 milhões.

 

Consultas junto a entidades que cuidam do assunto indicam que a Cide-combustível não é considerada ponto pacífico. O coordenador técnico da UCB, Yuriê Baptista, explica que a contribuição não é adequada para financiar o Bicicleta Brasil porque o valor da arrecadação varia a cada mês. Ou seja, as prefeituras não poderiam planejar suas aplicações nos projetos. Além disso, o recurso não é exclusivo para financiar a mobilidade por bicicleta, mas voltado para toda a infraestrutura de transportes.

 

Durante a fase de aprovação, o projeto previa que 15% do valor da arrecadação de multas de trânsito iria para o PBB, mas o item foi vetado pela Presidência da República com o argumento de que poderia diminuir as verbas destinadas a ações de segurança de trânsito. 

 

A solução, no entendimento do coordenador da UCB, é que do total da arrecadação federal, parte vá para a promoção do uso da bicicleta: "A gente precisa, de fato, que além desses recursos vinculados, seja Cide-combustíveis, seja multa de trânsito, que a mobilidade por bicicleta e as ações para promover a mobilidade sejam incluídas no Orçamento público. Então, [de] todo o bolo que a União recebe, de contribuições, de recursos, uma parte tem que ser destinada à bicicleta, da mesma forma que é destinada para saúde e educação." 

 

Já de acordo com a analista técnica de trânsito e mobilidade da Confederação Nacional dos Municípios (CNM), Luma Costa, não há problema com o financiamento do programa pela Cide: "Acho muito válido o financiamento de recursos vir da Cide-combustíveis, porque o transporte individual gera seu impacto, apesar de as pessoas acharem que elas pagam muito imposto por estar circulando. Existe também a utilização de uma infraestrutura viária, que é comum, que está sendo ocupada, e não é democrática. Não está circulando a maior parte da população naquela infraestrutura, está circulando quem está no carro e, geralmente, está sozinho nele."

 

Lugares de difícil acesso ao ciclista contribuem para desestimular o uso da bicicleta. Foto: Mariana Gil/WRI Brasil 


Até 2040 

O PBB será desenvolvido no âmbito da Estratégia Nacional de Promoção da Mobilidade por Bicicleta até 2040, ação conjunta do poder público, empresas e sociedade civil, com monitoramento e avaliação elaborada pela UCB. O programa é o primeiro passo da estratégia e vai buscar estimular o uso da bicicleta em níveis municipal, estadual e federal.

 

Para ler a reportagem completa, acesse o site da Agência Senado.

 

*Reportagem: Ana Luisa Araujo (sob supervisão); Pauta, coordenação e edição: Nelson Oliveira

 

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