"O Direito à Rua": livro será lançado domingo (28) em São Paulo

Em livro, o advogado Frederico Haddad discute os desafios para que os espaços urbanos sejam devolvidos aos cidadãos para caminhar, brincar, viver

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Fonte: Observatório do Terceiro Setor  |  Autor: Maria Fernanda Garcia  |  Postado em: 26 de agosto de 2022

Frederico Haddad, doutor e mestre em Direito na US

Frederico Haddad, doutor e mestre em Direito na USP

créditos: Reprodução

Ele estava no quarto ano do curso de Direito, quando escolheu o tema “mobilidade urbana para o seu TCC”. Estudando mais profundamente o tema, Frederico Haddad começou a se questionar sobre o uso das ruas pela população e sua importância. Depois de anos de estudo, o advogado lança o livro “O Direito à Rua: Políticas Públicas e a Função Social das Vias Urbanas”.


O livro investiga a função social das vias urbanas e apresenta uma visão crítica dos parâmetros jurídicos de aferição de seu cumprimento. Reproduzimos aqui a entrevista realizada por Maria Fernanda Garcia, do Observatório do Terceiro Setor.

 

Como surgiu seu interesse pelo tema para elaboração do livro?

O primeiro interesse foi pelo tema dos transportes urbanos e surgiu ainda na graduação. Cursava o quarto ano do curso de Direito em 2013, quando tive que escolher o objeto do meu TCC. A mobilidade urbana estava no centro do debate público e me instigou a estudar e me aprofundar o tema. No ano seguinte, sob a orientação da Profª. Maria Paula Dallari Bucci, que orientaria depois também o meu trabalho de mestrado, apresentei TCC sobre o direito ao transporte, que logo em seguida foi constitucionalizado.

Estudando transporte e vivendo em uma cidade como São Paulo foi praticamente impossível não começar a me questionar sobre o uso das ruas. A partir daí, influenciado, no campo teórico, por obras como as do sociólogo Eduardo A. Vasconcellos, e no campo aplicado, por diversas políticas inovadoras que vinham sendo implementadas pela gestão municipal (2013-2016), comecei a me dar conta de que outra organização do espaço de circulação é possível e de que os ganhos de bem-estar social daí decorrentes poderiam extrapolar, em muito, a questão da mobilidade urbana.

Foi então que, no final de 2015, me candidatei a uma vaga de mestrado em Direito do Estado com um projeto sobre a função social das vias urbanas. Iniciei formalmente o curso em 2016 e foi essa pesquisa que originou o livro que lanço agora, em 2022, pela Editora Fórum.

 

As praças e as ruas perderam seu espaço simbólico, antes vistos como lazer, espaço para manifestar, mostrar seu trabalho, hoje muitos enxergam como lugar de pessoas desocupadas, local violento e apenas usado para locomoção. Porque essa distorção? Como podemos mudar esse cenário?

É extremamente oportuna essa questão e tem muita relação com as inquietações que inspiraram o trabalho. No plano abstrato, a rua não é apenas o espaço de circulação, mas é o espaço público por excelência. Nenhum bem de uso comum do povo tem escala e capilaridade comparáveis. Em grande medida, quando reivindicamos a ocupação democrática do espaço público, estamos reivindicando também o direito à rua, que não é apenas lugar de passar, mas também lugar de ficar.

Do ponto de vista jurídico, isso se traduz em uma afetação múltipla das vias, que não se prestam a um único uso, mas a vários. A circulação pode ser vista como um uso principal, o que de nenhuma forma torna os usos secundários menos essenciais à vida urbana. A infraestrutura de telecomunicações, iluminação e saneamento, a distribuição de áreas verdes, a expressão da cultura, as manifestações políticas, o comércio de rua, as práticas de esporte e lazer, o convívio e a socialização entre as pessoas, a preservação da memória, tudo isso depende do uso das ruas para se concretizar.

O que aconteceu, principalmente, foi que houve uma escolha política por um padrão de mobilidade urbana que elimina ou restringe os usos secundários da rua. A prioridade ao transporte individual motorizado, a cultura do carro e as políticas públicas rodoviaristas são facetas de um processo de mudanças estruturais, que se reproduziram e se reproduzem incrementalmente a partir da legitimação derivada do direito, trazendo consequências sociais, ambientais e econômicas a toda a dinâmica da vida urbana.

Isso inclui restringir os espaços e os horários para usos livres, tornar o território urbano mais espraiado e fragmentado, dificultar a organização dos modos ativos e coletivos de mobilidade, elevar os níveis de poluição atmosférica, visual e sonora, e implica tornar a rua eminentemente um local de mera passagem.

O modelo rodoviarista, nesse sentido, é um modelo “anti-urbano”, que aproxima as vias da cidade de rodovias. Um local de passagem é em certa medida um local indesejado, que acaba relegado a abrigar, além dos veículos motorizados, o que é tido como indesejável por aqueles que são protagonistas da vida urbana. Estabelece-se um ciclo vicioso, em que a falta de incentivos para outros usos afasta as pessoas das ruas e retroalimenta o processo para sua degradação.


O Direito à Rua: lançamento discute potencialidades de uso do espaço público. 
Foto: reprodução


As manifestações e comemorações nas ruas dividem opiniões. De um lado pessoas que querem exercer seu direito nas ruas, do outro, pessoas que reclamam do barulho e a difícil locomoção. Qual é a sua opinião?

Na medida em que suportam diversos usos legítimos, as ruas são meios para a concretização de uma multiplicidade de direitos, o que naturalmente suscita conflitos. Trata-se de um bem físico, escasso, rival, sendo que a prioridade a certo uso inevitavelmente significa a restrição de outros. Nem sempre é fácil arbitrar em casos concretos, mas o Brasil conta com uma legislação urbanística progressista e oferece parâmetros bastante razoáveis e úteis nesse exercício cotidiano de ponderação e mediação.

De modo geral, entendo que manifestações políticas e culturais não atrapalham propriamente a locomoção em geral, mas principalmente um tipo de locomoção específico, que é o transporte por automóveis.

Modos ativos e modos coletivos de transporte são muito mais facilmente harmonizáveis com usos livres das ruas do que modos individuais motorizados. É uma questão em grande parte matemática: os modos ativos e coletivos ocupam muito menos espaço per capita.

Estudos empíricos mostram que cada usuário de transporte individual consome algo entre oito e nove vezes mais espaço de circulação do que um usuário de ônibus em horário de pico. Ou seja, além de ser socialmente mais justo e ambientalmente mais sustentável, a prioridade aos modos ativos e coletivos, como determina a legislação, permite que as cidades sejam mais ousadas no sentido de liberar parte do espaço de circulação para outros usos. Isso traz benefícios em diversas dimensões, inclusive ganhos econômicos.

O caso do barulho é bem diferente, porque envolve um potencial conflito entre usuários das vias e moradores adjacentes. Trocando em miúdos, uma virtual oposição entre o direito ao direito de reunião e a liberdade de expressão, de um lado, e o direito ao sossego, de outro. Aqui há necessidade de um arbitramento fino, que extrapola o planejamento de médio e longo prazo, e requer também uma mediação próxima e inteligente do poder público local, considerando as particularidades caso a caso. Penso que o exemplo do carnaval de rua em São Paulo é um caso de sucesso, porque o diálogo democrático e a organização rigorosa em termos de trajetos, horários e infraestrutura, de forma geral, contribui para conciliar os interesses de foliões e os interesses de moradores e comerciantes dos bairros que abrigam a festa. Claro que a mediação e a organização não eliminam os problemas, que são naturais da vida urbana, mas podem mitigar muito. Tem um trabalho muito interessante sobre essa política do carnaval de rua, de um amigo e colega de pós na faculdade, que é o Guilherme Varella. Vale a leitura.


Nos últimos anos alguns locais (ruas e avenidas) estão sendo destinados aos domingos para o lazer, com ótima aprovação pela população. Um exemplo é a capital paulista, com a Avenida Paulista e o Elevado Presidente João Goulart (Minhocão). Iniciativas como essas, estimulam as pessoas a saírem de casa e perder o medo das ruas?
Sem dúvida. Esse é um tipo de medida que está inclusive prevista na Política Nacional de Mobilidade Urbana (Lei n. 12.587/2012) e que traz ganhos de bem-estar em várias frentes. Isso estimula os modos ativos de transporte, promove a cultura e o esporte, fomenta o comércio de rua, propicia o encontro. No cômputo geral, esse tipo de política ajuda a desenvolver outra relação do cidadão e da cidadã com a cidade. Uma relação mais próxima, mais saudável, mais aberta e mais democrática. Sob o rodoviarismo, as atividades de lazer foram se transferindo para locais privados, como academias, clubes, boates e casas de festa. A rua é de todos e sua utilização livre significa republicanizar essas atividades e democratizar a cidade. No último capítulo do livro, busco analisar sobre essa outras perspectivas os mais de 50 anos de história do Elevado João Goulart.


A rua também é um meio de trabalho para milhões de brasileiros. Em diversas áreas, venda de produtos, prestação de serviços, artistas de diversos segmentos. Mas, muitos sofrem diariamente para exercerem seus trabalhos, inclusive com perseguição policial. Qual é sua opinião sobre o trabalho nas ruas?

A cidade moderna é indissociável do comércio e tem seu surgimento amalgamado à atividade comercial. O comércio de rua, em todas as suas expressões, é secular, benéfico à vida urbana e faz parte da sua cultura. A rua deve abrigar todo o tipo de troca, incluindo a troca de mercadorias. Contudo, é importante que o poder público local organize essas atividades em benefício do interesse público. Mas de forma alguma isso pode ser feito na base da repressão violenta, que sempre recai sobre as populações mais vulnerabilizadas, como os vendedores ambulantes ou as pessoas em situação de rua.

Apesar da posse coletiva, a rua é um bem público, não é coisa de ninguém. Por isso, para que seus diversos usos se harmonizem e otimizem, é preciso regular: definir o que pode, onde pode, quando pode e assim por diante. A extração privada de renda de um bem público deve ser regrada para atender o interesse coletivo.

A meu ver, isso significa de um lado uma organização harmônica do território, para que não se transforme numa feira livre permanente, e, de outro, o reconhecimento de que o comércio de rua é um meio de vida fundamental para milhões de famílias brasileiras, particularmente assoladas em um cenário de aumento da fome e da pobreza, aprofundamento das desigualdades e estreitamento do horizonte de oportunidades. Ou seja, a rua também é um local de trabalho e deve ser gerida considerando esta importante dimensão.

Em grandes metrópoles no mundo, seus moradores já trocaram seus carros por bicicletas e transportes públicos. O Brasil ainda engatinha para essa iniciativa. Transporte público lotado, trabalho longe da residência, ruas esburacadas, sedentarismo. Para você qual é o principal motivo das pessoas ainda não optarem por transportes menos poluentes?

Não é possível alterar o padrão de mobilidade sem que o Estado deliberada e conscientemente produza políticas públicas para tanto. As escolhas individuais são relevantes, mas se inserem em uma estrutura de incentivos poderosa e perene, que é conformada principalmente por decisões públicas.

Além de investimento financeiro, o transporte público precisa de espaço para funcionar bem. Ônibus em congestionamento significa ônibus com baixa frequência, com alta lotação, com utilização ineficiente de força de trabalho e combustível.
Tanto o congestionamento, como a fragmentação do território urbano que distancia residências e postos de trabalho são resultado de políticas públicas deliberadas que redesenharam as cidades para abrigar mais e mais veículos. Tanto veículos em trânsito, quanto veículos estacionados, vale lembrar. Os próprios fenômenos da gentrificação e da periferização são indissociáveis da lógica de produção de obras viárias nas cidades brasileiras.

Ou seja, existe um cardápio amplo de políticas que precisa ser decididamente mobilizado para que as pessoas que podem optar deixem seus carros em casa e utilizem outros modais. Entre elas, merecem destaque: políticas de adensamento demográfico das áreas centrais, com ênfase na construção de moradia popular; implantação de faixas e corredores de ônibus, bem como de ciclovias; restrição ao transporte motorizado, por meio de políticas como rodízio de veículos por terminação da placa e proibição de estacionamento na via pública em favor de outros usos (ciclovias, minipraças etc.); investimentos públicos para construir, alargar e melhorar as calçadas; redução de velocidade; investimento em transporte sobre trilhos; além de políticas de fomento aos usos secundários das ruas, como discutimos antes.


Pessoas em situação de rua ainda é um grave problema enfrentado no país, nos últimos anos o contingente aumentou, com famílias inteiras indo morar nas ruas, enfrentando preconceito e sendo comparadas a criminosos ou acomodados. O Padre Júlio Lancellotti, que trabalha junto com a população de rua chegou a ser ameaçado várias vezes por ajudar essas pessoas. Como você enxerga esse cenário?

O Estado de São Paulo, em especial a Região Metropolitana da capital, vive um cenário dramático. O número de pessoas em situação de rua se multiplicou muitas vezes recentemente, como resultado da crise econômica e sanitária, potencializada pela ausência de políticas públicas efetivas para o combate à pobreza, à fome e à miséria. As políticas sociais estão sob desmonte desde 2016 e fizeram muita falta no momento em que a população brasileira mais precisou delas.

A estigmatização e a criminalização dessa população é uma faceta que torna a situação toda ainda mais grave e revoltante, sendo o trabalho admirável de pessoas como o Padre Júlio Lancellotti uma fonte permanente de inspiração e um chamado para que todos nós, que nos encontramos em situação de privilégio, transformemos a indignação em ação concreta, seja por meio da sociedade civil organizada, ou do próprio Estado.

O Brasil voltou ao mapa da fome, do qual havíamos saído em 2014, e boa parte das pessoas afetadas estão nas cidades. O poder público local tem um papel central na busca ativa das famílias, no seu cadastro em listas de benefícios e programas sociais, na produção de moradia popular e no acolhimento da população em situação de rua em abrigos adequados.


O seu livro pode ajudar a conscientizar as pessoas a voltarem a enxergar as ruas como forma de lazer, de manifestação, um espaço democrático e não mais um lugar a se temer?

Humildemente, espero que possa de alguma forma contribuir nessa direção. É um trabalho que se insere num universo muito amplo, num esforço coletivo de diversos pesquisadores e pesquisadoras atentas à questão urbana, e que se apoiou em pesquisas anteriores de inestimável valor. Penso que a produção e reflexão acadêmica devem ajudar a orientar e subsidiar a ação política. Apenas através dela será possível transformar a forma de organização das cidades em favor do bem-estar de sua gente.


Lançamento:
Para quem estiver na capital paulista, o lançamento do livro “O Direito à Rua: Políticas Públicas e a Função Social das Vias Urbanas”, ocorrerá no próximo domingo 28/08, das 14h às 16h, na Avenida Paulista 509, em frente à livraria Martins Fontes, em São Paulo. O livro também já esta disponível em várias plataformas de mídia. Para mais informações e compra clique aqui.


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