Em defesa das pedras portuguesas

Calçadas com mosaicos de pedra podem ser associadas a placas e peças de concreto para garantir a necessária acessibilidade. E, como quaisquer materiais exigem conservação

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Fonte: Mobilize Brasil  |  Autor: Marcos de Sousa/Mobilize Brasil*  |  Postado em: 08 de outubro de 2022

Praça do Rossio, de 1849, em Lisboa, Portugal

Praça do Rossio, de 1849, em Lisboa, Portugal

créditos: Município de Lisboa


Nesta semana a Prefeitura do Rio de Janeiro realizou uma solenidade no Palácio da Cidade para a entrega dos certificados de conclusão de curso a 57 alunos e alunas formados na técnica tradicional para a execução de calçadas com pedras portuguesas. A parte prática do curso foi realizada pelo professor Gedião Azevedo, último remanescente da equipe de calceteiros na Secretaria de Conservação do Rio. Gedião aprendeu a profissão na década de 1990, quando calceteiros de Lisboa fizeram o primeiro curso para formar especialistas. À época, a cidade tinha 136 auxiliares de calceteria, atividade que foi sendo terceirizada com o passar dos anos. 


Como se sabe, a capital fluminense ostenta vários mosaicos de pedras em suas calçadas, alguns herdados do período em que a cidade era a sede do Império, e depois a capital da República. Mais tarde, no projeto de urbanização do Aterro do Flamengo, arquiteto paisagista Roberto Burle Marx adotou a técnica para a pavimentação dos amplos calçadões, baseando-se no padrão de ondas da praça do Rossio, em Lisboa. E as tais ondas roubadas do Rossio se tornaram uma espécie de assinatura do Rio de Janeiro.


A origem da técnica de desenhar o pavimento com pedras veio da ocupação romana na península ibérica, bem antes de Portugal se tornar um reino independente. Mas a consolidação desse fazer somente ganhou as ruas das cidades do Porto e de Lisboa no século 16, justamente o período das grandes navegações. E foi também em Portugal que os mosaicos ganharam cores contrastantes e desenhos mais exuberantes, talvez por influência dos árabes que dominaram a Península Ibérica até meados do século 13.


A partir do século 19, essa herança lusitana estendeu suas marcas para várias outras cidades brasileiras, como Manaus, Belém, Salvador, Curitiba, Florianópolis, Belo Horizonte, Aracaju, Recife, São Paulo e centenas de outras localidades, em todas as regiões do país. E até bem pouco tempo, qualquer cidade do país ostentava ao menos uma praça com as tais pedrinhas, basicamente calcário e basalto, rejuntadas com areia.


Mas...


Sem manutenção permanente e adequada, sob chuva e sol, recebendo tráfego de veículos pesados e impactos de conteineres de aço e outras cargas pesadas, as calçadas de mosaicos portugueses tendem a desmanchar. Como as pedras são montadas e afixadas sob pressão, basta soltar uma das pedras e todo o conjunto tende a desfazer-se.


O problema afeta calçadas aqui no Brasil e também em Portugal, Angola, Mocambique e outros países lusófonos. Some-se a isto os danos ambientais gerados pela extração das pedras, o trabalho duro de montar e manter os quebra-cabeças de pedras, e mais as dificuldades para a circulação de pessoas com deficiência, e tem-se um mosaico de motivos para justificar o banimento dessa técnica tradicional.


No final do século 20, várias cidades começaram campanhas intensas para a retirada dos pisos de pedras, substituindo os antigos mosaicos por ladrilhos cimentícios, blocos e placas de concreto ou simplemente por pisos de concreto.


Em São Paulo, o exemplo mais alardeado vem da avenida Paulista, que em 2007 teve suas calçadas de pedras substituídas por um piso de concreto extremamente bem executado e nivelado. Essas novas calçadas da Paulista de fato tornaram-se mais adequadas para idosos, cadeirantes e pessoas com deficiência visual, permitindo também que qualquer pedestre caminhasse sem sobressaltos. Tornaram-se uma referência para a cidade.


Mas ali perto, no mesmo ano, em uma das mais famosas travessas da avenida - a rua Augusta - as calçadas de mosaicos foram substituídas por pisos de blocos de concreto. Parecia uma boa ideia, mas um ano depois os blocos intertravados já estavam completamente destravados, desalinhados, cedendo à passagem de veículos, gerando pequenos buracos e desnivelamentos, que exigiriam manutenção imediata, mas nunca realizada. 



Trecho da Trecho rua Augusta, em São Paulo: blocos de concreto desagregados. Foto: Luiza Vaz  


Enquanto isso, os amplos calcadões de pedra no Vale do Anhangabaú e em toda a região do Centro paulistano continuavam suportando as pancadas de caçambas de entulho, a passagem de veículos pesados, os trancos do skate street... 

 

Em outras áreas da cidade, pequenas praças pavimentadas com pedras portuguesas foram invadidas e transformadas em estacionamentos de veículos. E também não suportaram o esforço gerado pela frenagem e arranque de veículos pesados, todos os dias e várias vezes por dia. Muitos desses pisos foram desmanchados por essa ocupação indevida.

 

Em 2016, Prefeitura de São Paulo desenvolveu um projeto-piloto para a pavimentação da rua Sete de Abril com um novo tipo de bloco de concreto, mais robusto e ajustável, em uma experiência pensada para substitutir as pedras dos calçadões. Apesar do cuidado no projeto e na escolha dos materiais, a obra se mostrou problemática e ficou inconclusa, com remendos, buracos e outras imperfeições, muito longe do resultado esperado.


Obra na rua Sete de Abril em 2016: blocos maciços para novo calçadão. Foto: SPUrbs


Em 2019, pouco antes da chegada da pandemia de Covid 19, a mesma prefeitura paulistana iniciou a demolição do pavimento de pedras do Vale do Anhangabaú, pondo fim à intervenção realizada nos anos 1980, pelos urbanistas Jorge Wilheim e Rosa Grena Kliass. Foram demolidos 43 mil metros quadrados de pavimentos de mosaico português, que realmente apresentava problemas em vários trechos. A obra foi entregue ao público em 2020, com um pavimento de concreto que supostamente terá maior resistência ao tempo. Mas o resultado ainda divide opiniões: se por um lado, trouxe uma significativa melhoria na acessibilidade ao espaço do Anhangabaú, também é verdade que a paisagem resultante se mostrou monocórdia, sem as variações de cor e de textura oferecidas pelo mosaico de pedras brancas e marrons. 

 


 Anhangabaú, antes e depois Fotos: Leonardo Finotti e Zanose Fraissatt/Folhapress

   

Efeitos do tempo
Na Paulista, passados 15 anos, notamos agora o envelhecimento do pavimento de concreto construído em 2007: rachaduras, desnivelamentos, placas podotáteis soltas já provocam acidentes em vários pontos na calçada daquela avenida, fruto dos velhos problemas: veículos pesados, choques de caçambas, impactos de skates, além de obras subterrâneas realizadas por concessionárias de energia, dados e águas, que deixam cicatrizes mal curadas.


Retomando o caminho das pedras, vale lembrar que algumas cidades encontraram soluções híbridas, que combinam concreto, placas de pedra e mosaicos. Um bom exemplo pode ser visto na praça anexa à Ponte do Imperador, em Aracaju (SE), onde uma belíssima calçada com mosaico de pedras foi conservada e associada a faixas de concreto e outros componentes de concreto que permitem plena acessibilidade a cadeirantes, pessoas idosas, carrinhos de bebê e caminhantes.

 


Praça Fausto Cardoso, em Aracaju: pedras e faixas de concreto; Foto: Pref. de Aracaju


E voltando aos calceteiros do Rio de Janeiro, o exempo da prefeitura carioca merece ser replicado em outras capitais do país e estendido para outras técnicas de pavimentação, incluindo placas, ladrilhos, blocos e outras soluções, além de pisos com placas e mosaicos de pedras.


Nenhuma calçada suportará tantos desaforos sem a manutenção e limpeza permanentes. De nada serve imputar os pecados aos materiais quando os buracos começam a surgir. E as pedras não têm culpa: já foram extraídas, transportadas, trabalhadas, cuidadosamente organizadas por calceteiros de outros tempos. Elas são a cidade.

*Marcos de Sousa é jornalista e editor do Mobilize.
A opinião manifestada neste artigo não exprime necessariamente a opinião da equipe do Mobilize Brasil.


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