Uma radiografia do trabalho de mototáxi

Pesquisa do Instituto Cordial para a Uber mostra os problemas, riscos e dilemas que afetam condutores e passageiros dos serviços com motocicletas. E sugere mudanças

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Fonte: Instituto Cordial  |  Autor: Mobilize Brasil  |  Postado em: 29 de maio de 2024

Motociclista a serviço da plataforma Uber

Motociclista a serviço da plataforma Uber

créditos: Divulgação Uber

O número de motociclistas mortos em sinistros de trânsito no Brasil cresceu cerca de 13% por ano entre 1996 e 2021, conforme dados do Departamento de Informática do Sistema Único de Saúde (DataSUS). Apenas em 2021 foram 11.942 mortes de motociclistas, 48% delas em via pública, conforme os registros do DataSUS.

 

Essas informações alarmantes estão na raiz do trabalho "Segurança viária e transporte de passageiros em motocicleta em quatro capitais do Brasil: Fortaleza, São Paulo, Rio de Janeiro e Manaus", com dados coletados de abril/2023 a março/2024 pelo Instituto Cordial, a pedido da plataforma Uber. O trabalho revela uma série de problemas que afetam profissionais, passageiros e pedestres, envolvendo a circulação de motocicletas nessas capitais brasileiras.


“Nosso foco foi fazer uma abordagem ampla sobre os riscos da circulação de motocicletas com passageiros e aprofundar a análise do cenário da segurança do mototáxi em regiões distintas do Brasil. Os serviços de transporte de pessoas e mercadorias por moto podem ser alternativas de trabalho digno, inclusão social e geração de renda se bem estruturados. Contudo, há uma grande preocupação sobre a segurança das pessoas nesses serviços, dado o aumento dos sinistros de trânsito com motociclistas na última década no país. Considerando que a circulação de motocicletas com passageiros é permitida no Brasil, analisar e compreender esse cenário é fundamental. Só assim poderemos ter ações públicas e privadas baseadas em evidências que garantam que esse modo de transporte seja seguro. E o estudo traz uma série de recomendações nesse sentido”, diz Luis Fernando Villaça Meyer, diretor de operações do Instituto Cordial e supervisor do estudo.


O estudo destaca que as motocicletas possuem o diferencial de transitar com eficácia por áreas urbanas densas, alcançando locais inacessíveis ao transporte coletivo e veículos individuais, como bairros afastados, vias estreitas e regiões com topografia desafiadora — condições comuns em áreas periféricas e carentes onde muitas vezes o transporte público não chega.


Historicamente, os pedestres eram as principais vítimas de sinistros de trânsito. Porém, nos últimos anos, as ocorrências envolvendo motociclistas começam a aumentar de forma preocupante. “Em 1996 os óbitos de motociclistas representaram 2% das mortes no trânsito do Brasil e em 2021, esse índice atingiu 34%. Enquanto as tarifas do transporte público permaneceram crescendo, a motocicleta veio como uma alternativa muitas vezes mais acessível, ainda mais para a população mais vulnerável social e economicamente, que pode utilizá-la inclusive como fonte de renda. A questão não é, então, apenas de segurança viária, mas também social e de acesso à cidade”, destaca Luis Fernando.


O estudo objetiva entender a multiplicidade de fatores que compõem este cenário para planejamento de ações e tomada de decisões a fim de promover melhorias na segurança viária e outras medidas que envolvem o serviço. A coleta de dados se deu de três formas: por observações de campo, entrevista em profundidade e realização de grupos focais.

 

Em linhas gerais, é possível identificar cinco eixos sobre os quais a análise dos dados coletados se assentou: 

- respeito às leis e normas de trânsito;

- comportamento do passageiro;

- condições das vias;

- questões urbanas, com destaque para a criminalidade e a falta de segurança pública; 

- relação dos aplicativos com os trabalhadores.

 

Por mais que se fale sobre a segurança do motociclista de forma geral e indistinta, o estudo mostra que os fatores de risco associados à condução com passageiros possui diversas especificidades em comparação com outros usos da motocicleta, como o lazer ou para delivery.


O papel do passageiro
Por exemplo, foi muito debatida a questão do “bom garupa”, aquele passageiro que sabe se portar em cima de uma motocicleta. Diferente de outros modos de transporte motorizado, em que o passageiro é apenas alguém sentado confortavelmente em seu assento, na motocicleta ele assume o papel de copiloto.


Alterações no estado psíquico do passageiro (uso de drogas lícitas ou ilícitas), movimentos bruscos, falta de habilidade para acompanhar o piloto, desatenção no trajeto etc., são situações extremamente sensíveis no contexto do transporte por motocicleta. Ou seja, o passageiro é ativo em seu papel durante o deslocamento, de forma que ele também possui responsabilidade pela segurança de ambos sobre a moto.

 

Se, por um lado, este é um serviço que exige uma atenção especial para o passageiro,  é necessário também pensar em especificações para os veículos que fazem esse tipo de transporte. Ou seja, existem limites de altura (pelo equilíbrio) e peso (pela capacidade) que uma motocicleta pode suportar, além da necessidade de equipamentos de proteção e alças de segurança para o garupa.

 

Nas cidades pesquisadas, o transporte de passageiros em motocicletas é uma atividade bastante concentrada em públicos de classe média baixa ou mesmo de classe baixa, que em geral moram em locais com baixa ou nenhuma oferta de serviços públicos ou de infraestrutura urbana. Outro aspecto importante é o gênero dos passageiros. Diferentemente de outros modos de transporte, as motocicletas são  utilizadas principalmente por mulheres, que costumam ter um cotidiano de viagens menos pendular. E a flexibilidade, o baixo custo e a rapidez do transporte por motocicleta parecem ser características relevantes para esse público.

 

Em Manaus, por exemplo, a pesquisa identificou que diversas mulheres tinham uma touca higiênica em suas bolsas para usá-las sob o capacete, ou até mesmo andavam com um capacete próprio. A questão higiênica se impõe e, por ora, a legislação pouco se atentou a isso, apontando apenas para a necessidade do uso do capacete.


Outro aspecto observado no estudo foi a importância do relevo e da própria geometria das vias. Em Fortaleza, o traçado curvilíneo das ruas obriga os condutores a reduzir a velocidade, enquanto no Rio de Janeiro, a declividade dos bairros e os tipos de pavimento impõem a cautela sobre a pressa eventual. Por outro lado, a pesquisa mostrou que o transporte de passageiros em motocicletas permite que pessoas acessem locais com arruamento em condições adversas, onde o transporte público e os automóveis também não conseguem chegar.


Em relação ao respeito às leis de trânsito, ficou evidente que a fiscalização é um fator fundamental. No caso de Fortaleza, observou-se que as leis de trânsito são respeitadas especialmente onde há fiscalização. Na ausência de agentes de trânsito ou de câmeras, ficou evidente o desrespeito à legislação e os comportamentos inapropriados, como avançar o farol vermelho, parar em cima da faixa de pedestres etc.

 

Passageiro sem capacete em mototáxi de Niterói (RJ) Foto: Coluna Gilson Monteiro

 

Essa ausência do Estado também coloca os mototaxistas em situações de risco. Em todas as cidades pesquisadas, foram mencionados casos nos quais os motociclistas precisam mudar a conduta de circulação em função de regras estabelecidas pelo crime organizado, como as exigências de trafegar sem capacete ou tirar o celular do suporte.


Por outro lado, a exposição ao risco de ser assaltado em regiões perigosas da cidade também afeta o cotidiano desses trabalhadores, que evitam circular ou buscar passageiros em determinados locais, como vielas e ruas com pouca iluminação. 

Essa sensação de impotência dos condutores e de falta de representatividade da categoria levou à criação de grupos organizados de motociclistas, para autoproteção tanto em termos de segurança viária, como de segurança pública. E também para aumentar sua representação em instâncias políticas e jurídicas, conforme entrevistas realizadas pela pesquisa. De forma geral, os trabalhadores entendem que as plataformas de aplicativos deveriam assumir mais responsabilidade em relação a esses riscos.


Ao final, o trabalho do Instituto Cordial oferece uma lista de recomendações dirigidas aos gestores públicos para melhorar a segurança viária dos mototaxistas e de seus passageiros. As recomendações ao poder público dizem respeito especialmente à legislação, a questões normativas e de infraestrutura, além do reforço à fiscalização. Outro problema detectado é a disparidade no volume e na qualidade de dados disponíveis sobre sinistros de trânsito envolvendo motociclistas com passageiros em cada cidade. E sugere que a coleta e publicação de dados públicos de segurança viária aconteçam de forma sistemática e padronizada, com periodicidade, no mínimo, anual, para que haja monitoramento adequado do cenário de cada município, com a adoção imediata de medidas preventivas e corretivas.


Já as recomendações às plataformas são relacionadas especialmente às condições de trabalho e assistência ao motociclista, treinamento mínimo e conscientização do passageiro, programas de formação para motociclistas, fornecimento de equipamentos de segurança e de seguro para cobrir eventuais sinistros e outras emergências aos motociclistas enquanto estiverem em serviço, incluindo sinistros com passageiros, entre outras.


O estudo conclui que ao "invés de demandar a extinção do serviço de mototáxis sem considerar seus aspectos sociais e de acessibilidade, a solução passa por compreendê-lo em seu contexto, além de garantir o acesso ao transporte coletivo. 

 

Acesse o estudo completo:



  

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