Universalização da mobilidade urbana através do modo a pé

Leia o ensaio crítico da arquiteta Renata Marie Miyasaki, produzido no âmbito do curso de Gestão da Mobilidade Urbana da ANTP

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Fonte: ANTP  |  Autor: Renata Marie Miyasaki  |  Postado em: 10 de fevereiro de 2014

Em cidades grandes, cerca de 1/3 das viagens são a

Em cidades grandes, cerca de 1/3 das viagens são "a pé"

créditos: Hélvio Romero


Neste artigo, a arquiteta e urbanista da CPTM defende que o pedestre, elemento mais frágil da cadeia de mobilidade, seja privilegiado nos planos de urbanização e circulação das cidades. E que a Prefeitura assuma o projeto, construção e fiscalização das calçadas, deixando ao proprietário a responsabilidade por sua manutenção e conservação

 

Dentre os meios de transporte existentes nas cidades, a viagem a pé representa o modo mais universal e natural, correspondendo a grande parte dos deslocamentos diários das pessoas, com ou sem a utilização de um modo de transporte complementar.

 

Mesmo em grandes metrópoles como São Paulo, verifica-se que cerca de 6% do total das viagens são realizadas exclusivamente a pé. Além disso, frequentemente, para utilizar outros modos de transporte motorizado, individual ou coletivo, o indivíduo anda para acessar ao veículo e ao seu destino final.

 

Todas as pessoas precisam circular para realizar suas atividades sociais, culturais, políticas e econômicas. Entretanto, a capacidade de apropriação real do sistema de circulação tem relação direta com a condição física e econômico-social de cada indivíduo.

 

Ao mesmo tempo, o espaço físico disponível na cidade é finito e será disputado por diferentes interesses para seu uso e ocupação. Portanto, sempre haverá um conjunto de forças determinando o desenvolvimento da cidade e a destinação dos espaços públicos.

 

Nesse sentido, o papel do poder público no modelo de urbanização e de circulação das cidades é fundamental para buscar a equidade na mobilidade, acessibilidade e uso do espaço urbano.

 

"Como o atendimento de todos os interesses é impossível, e como o planejamento da circulação não é uma atividade neutra, todo ambiente de circulação é fisicamente marcado pelas políticas anteriores, que revelam os interesses dominantes que as moldaram. O arranjo físico de muitas cidades contemporâneas, nos países em desenvolvimento, pode ser visto como uma prova da reorganização do espaço para o desempenho prioritário do papel de motorista. Isso foi feito por meio da adaptação das cidades à circulação conveniente dos automóveis, à custa do desempenho de outros papéis, principalmente dos de pedestres e passageiros de transporte público”. (ANTP, Gestão da Mobilidade Urbana, Parte I, Lição 04 - O Uso do Sistema de Circulação, 2013).

 

O sistema de mobilidade envolve grande consumo do espaço territorial, na forma de viário e calçadas. Tanto o leito carroçável quanto as calçadas tem limitação de capacidade física para acomodar seus fluxos, implicando em disputa pelo espaço das vias da cidade entre pedestres e veículos.

 

Como dito anteriormente, caminhar compõe parte dos deslocamentos da maioria da população, assim, as calçadas são elementos essenciais para a sua circulação.

 

Entretanto, em geral, no Brasil, a construção da calçada é responsabilidade do proprietário do terreno lindeiro. Como consequência, as calçadas são mal conservadas, irregulares ou inexistentes. Ao contrário, o Governo Municipal é responsável pela execução e manutenção do leito carroçável.

 

Propõe-se que as vias públicas sejam conceituadas segundo a prioridade de uso, ou seja, as vias locais e coletoras devem ser projetadas privilegiando-se a circulação de pedestres e as vias arteriais e de trânsito rápido voltadas à circulação de veículos.

 

Um plano de adequação da rede de circulação de pedestre poderia eleger a implantação de melhorias prioritariamente nas vias de grande fluxo de pedestre – como é o caso da área central da maioria dos municípios – e nas vias locais, que representam a maioria das vias de uma cidade; ampliando progressivamente a adequação das calçadas nas vias coletoras, arteriais e de trânsito rápido.

 

Apesar da complexidade do assunto, propõe-se que a municipalidade volte seus investimentos para atendimento ao elemento mais frágil da cadeia de mobilidade: o pedestre, responsabilizando-se pela construção das calçadas.

 

Imagina-se que nas vias voltadas prioritariamente à circulação dos pedestres, o modelo de gestão deveria ser global, no qual a Prefeitura assume integralmente o projeto e a construção das calçadas, ficando a cargo do proprietário a sua manutenção e conservação. Já nas vias de maior porte, adotar-se-ia uma gestão compartilhada, em que a Prefeitura teria a responsabilidade pelo projeto e implantação, mas os proprietários dos lotes assumiriam os custos das obras e a manutenção das calçadas. Continuaria a cargo das prefeituras o controle da qualidade das calçadas, realizando atividades de fiscalização, autuação e aplicando medidas punitivas aos proprietários infratores.

 

É importante que o projeto do sistema viário (calçadas e vias) seja de responsabilidade exclusiva do município para garantir o atendimento às normas; dimensões compatíveis com a demanda prevista; e manutenção da uniformidade e homogeneidade de padrões ao longo das quadras. Havendo ainda a necessidade de elaboração de um plano, regulamentações, padronizações, campanhas de comunicação, programas e projetos específicos para faseamento da implementação do conjunto de ações.

 

Uma parceria entre os entes governamentais também poderia ser estabelecido de modo que a implantação das calçadas em uma quadra com equipamento público seria de responsabilidade do órgão gestor de tal equipamento, de forma a garantir minimamente a sua acessibilidade imediata. Um exemplo aplicável poderia ser a elaboração pela Prefeitura de um projeto de microacessibilidade para a quadra no entorno de todas as estações de metrô e trem, que seria executado em parceria com o prestador do serviço de transporte coletivo, o que permitiria a melhora da acessibilidade direta ao sistema, inclusive com a possibilidade de ampliar os espaços de circulação dos pedestres e áreas para integração com outros modos de transporte. Esta ação poderia ser aplicada, entre outras, a quadras com equipamentos de educação, saúde, cultura, bem como em parceria com entes privados em áreas com concentração comercial, industrial, etc, desonerando os gastos de implantação pela municipalidade.

 

 

O gráfico acima mostra que o meio de transporte "a pé” é muito significativo em cidades menores, e mesmo em grandes cidades representa um terço dos deslocamentos das pessoas. Nesse sentido, uma política pública voltada para a qualidade das calçadas beneficiaria grande parte da população, vindo de encontro à diretriz de prioridade dos modos de transportes não motorizados sobre os motorizados, estabelecida na Política Nacional de Mobilidade Urbana.

 

A proposta visa, em longo prazo, uma mudança de paradigma das políticas públicas voltadas à mobilidade urbana, de modo a garantir a fluidez, segurança e conforto da maioria das pessoas, especialmente nas áreas onde a circulação deveria se dar prioritariamente a pé, o que no futuro poderá proporcionar a criação de espaços de convivência e estímulo à transformação das relações sociais de vizinhança.

 

É nítida a espacialização de um conjunto de interesses na conformação das cidades brasileiras atuais, que reflete a desigualdade de forças de seus agentes e consequentemente das condições de atendimento à população. No aspecto da mobilidade urbana existe uma grande diferença no provimento de infraestrutura por parte da administração pública, o que tem levado ao esgotamento do modelo de circulação nas cidades.

 

Investir na melhoria da infraestrutura de circulação para o pedestre busca reorientar o padrão de desenvolvimento das cidades brasileiras nas últimas décadas. Tal iniciativa contribuiria para a construção de cidades mais eficientes e ambientalmente sustentáveis, para a redução das desigualdades na distribuição do espaço urbano e promoção da inclusão social, e proporcionando, ainda, melhor qualidade de vida à população no que se refere à acessibilidade e mobilidade urbana, condizentes com os princípios da Política Nacional de Desenvolvimento Urbano e na Política Nacional de Mobilidade Urbana Sustentável.

 

Renata Marie Miyasaki - arquiteta e urbanista; trabalha na Gerência de Planejamento de Transportes da CPTM - Companhia Paulista de Trens Metropolitanos/SP

 

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