Parados na contramão

Por que os gestores públicos hesitam em priorizar pedestres, ciclistas e transporte público? Leia artigo de Sergio Avelleda publicado originalmente na revista Piauí

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Fonte: Revista Piauí  |  Autor: Sergio Avelleda  |  Postado em: 23 de fevereiro de 2021

Congestionamento no Minhocão já em 1971

São Paulo:congestionamento no elevado "Minhocão" já em 1971

créditos: Acervo O Estado de S.Paulo


Prefeitos e governadores já sabem que deveriam taxar os usuários de carros para investir em transporte público, ciclovias e calçadas. Mas falta coragem para operar essa mudança, escreve Sergio Avelleda em artigo publicado originalmente na revista Piauí. A leitura é obrigatória e por isso reproduzimos o texto na íntegra

 

É possível que alguma vez, numa roda de amigos em um bar no final de semana – quando podíamos nos reunir numa roda de amigos no final de semana, prazer que a responsabilidade impedirá até que a vacinação se complete –, você tenha ouvido algo assim: “Eu não uso transporte público no Brasil. É uma droga. Minha empregada me conta que passa mais de duas horas entre trem e ônibus para chegar ao trabalho. Nem pensar.” E depois de muitos chopes, na hora de ir embora, lá está o amigo “crítico” entrando em seu automóvel, que pesa entre 1 e 2 toneladas – e, a 40 km/h, considerado o espaço necessário para frear e acelerar, poderá ocupar até 115 metros quadrados das ruas e avenidas por onde passar, segundo estudo realizado na Suíça.


A constatação de que o transporte público no país é ruim, feita por alguém que não o utiliza, costuma se basear em preconceito. Discurso semelhante se ouve sobre o Sistema Único de Saúde. Nada presta para quem não usa – enquanto representa uma salvação para os usuários. O SUS não é uma maravilha, claro, mas resolve boa parte dos problemas de saúde pública no Brasil.


Os principais problemas da mobilidade urbana – conceito que abrange, além do transporte público, a caminhada, o uso da bicicleta, o veículo particular, os sistemas baseados em plataformas e a distribuição de bens e produtos – têm origem, curiosamente, fora da própria mobilidade urbana. Sempre digo que uma cidade com problemas de mobilidade é como um doente com febre. A febre não é a doença, é o corpo tentando alarmar sobre a existência de outro mal. No caso das cidades, aquelas que têm linhas de ônibus e metrôs lotadas, congestionamentos e altos índices de acidentes de trânsito tentam desesperadamente dizer: “Fomos mal planejadas. Nosso crescimento foi irracional. As pessoas moram cada vez mais longe e as oportunidades de trabalho estão cada vez mais concentradas…”


A solução para esses problemas estruturais demanda não apenas vontade política e engajamento dos atores urbanos como também um longo, longuíssimo prazo. Enquanto isso, os sistemas de mobilidade urbana precisam receber investimentos e prioridades para viabilizar e democratizar o acesso nas cidades. Sem ele, a urbe perde competitividade e diversidade, correndo o risco de diminuir sua riqueza.


O investimento em transporte público é daquelas unanimidades em debates. Ninguém, de fato, anuncia hoje planos de governo dizendo que irá investir para que as pessoas possam usar mais carros; que os automóveis serão beneficiados com novas avenidas e viadutos; que se pretende retirar espaços de pedestres, de ciclistas (quase inexistentes) e do transporte público para oferecer aos veículos motorizados de quatro ou duas rodas. Tenho lido inúmeros projetos governamentais nos últimos anos e nunca encontrei nada parecido.


Entretanto, durante a execução de tais planos, vemos muito pouco apetite para realmente priorizar o transporte público. Não se investe o mínimo necessário, não se trabalha para equacionar o financiamento da operação dos serviços. Evita-se tomar espaço dos carros para a implantação de faixas de ônibus, que melhoram significativamente a eficiência desse serviço a um custo incrivelmente baixo. Não se moderniza a contratação de operadores privados e não se investe em tecnologia. Em regiões metropolitanas quase não há iniciativas para a implantação de gestão conjunta, apesar da farta literatura e experiências que mostram os incontáveis ganhos do uso de autoridades metropolitanas. Em resumo: sabemos de cor e salteado o que deve ser feito, porém quase não fazemos. A pergunta na qual cada vez mais insisto é: por que o debate sobre transporte coletivo não anda – com o perdão do trocadilho – nas cidades brasileiras?


Não há espaço neste artigo para esgotarmos as possibilidades de por que não fazemos o óbvio, o que é sabido, ressabido e experimentado. Todavia, podem ser levantadas algumas das principais hipóteses.


Penso que uma das razões que nos fazem permanecer numa espécie de inércia é a falta de consciência da sociedade do conceito de externalidades nos sistemas de mobilidade. Externalidade é um efeito de uma determinada atividade que atinge outros, não afetando a atividade que a gera. Ela pode ser negativa, quando prejudica terceiros, ou positiva, se os beneficia.


O uso individual do automóvel é um forte gerador de externalidades negativas. Um carro pesa entre 900 kg e duas toneladas. Na média, nas cidades brasileiras, um automóvel transporta 1,1 passageiro. Ou seja, para mover algo ao redor de 80 kg, usa-se uma máquina que pesa até 24 vezes mais. O consumo de energia para mover essa pessoa, medido em megajoules, está entre 2,3 e 2,6 Mj/pass-km (megajoules por passageiro por quilômetro)1, mostram dados da Associação Nacional de Transportes Públicos (ANTP). Se ela decidisse ir de ônibus, consumiria entre 0,6 e 0,8 Mj/pass-km. Esse excessivo consumo de energia faz dos carros os grandes vilões da poluição urbana. E, para piorar, não se pode esquecer que automóveis ainda ferem e matam milhares de pessoas todos os dias.


Um estudo publicado pela Discourse Media, realizado em cidades canadenses, mostra que se o deslocamento a pé custa para um indivíduo que está caminhando a quantia de 1 dólar, para a sociedade essa viagem custará 1 centavo de dólar. Se a decisão for se locomover por bicicleta, a proporção será de 1 dólar de despesa para o ciclista e 8 centavos de dólar para a coletividade. Caso nosso viajante decida ir de ônibus e essa viagem lhe custe o mesmo 1 dólar, a sociedade pagará 1 dólar e 50 centavos. Achou caro? Então veja o custo da viagem em carro individual. Se o nosso motorista desembolsa 1 dólar para uma viagem de automóvel, toda a sociedade arcará com 9 dólares e 20 centavos.


Surpreso? Pois é, nós não fazemos esse debate. A sociedade não tem noção do custo que suporta para que as pessoas se movam por meio de carros. Dou como exemplo a cidade de São Paulo. Se você entrar no site da prefeitura, vai identificar facilmente os valores pagos a título de subsídio ao transporte público. Está lá, em uma rubrica orçamentária específica. No entanto, tente levantar o gasto do executivo municipal com o transporte individual motorizado. Você não vai encontrar. Nem em São Paulo e, provavelmente, em nenhuma outra cidade do Brasil.

 

E, claro, não é que a despesa não exista. Existe e é gigantesca: é parte significativa dos gastos com todo o pavimento de 17 mil km de ruas e avenidas da capital paulista2, placas de trânsito, semáforos e engenharia. Também se reflete no custo financeiro e humano com as mortes e os feridos – 60% das vagas de UTI no país são ocupadas por vítimas de acidentes de trânsito –, a poluição, os congestionamentos, o uso do espaço público e outros custos tangíveis e intangíveis. Quando uma despesa não é conhecida, temos a sensação de que ela não existe. Se não incomoda a sociedade, não há razões para discuti-la. Se não discutimos, seguimos, como sociedade, pagando por ela, sem questioná-la. Em compensação, debatemos intensamente se o subsídio ao transporte público em São Paulo é muito, se é pouco, se é bem gasto, se pode ser melhor aplicado etc.


Muitas cidades ao redor do mundo estão enfrentando esse debate. É justo que toda a sociedade subsidie o uso do veículo particular, que gera tantas externalidades negativas? É correto que o uso privado das vias públicas pelo automóvel continue sendo suportado por todos os pagadores de impostos, inclusive por aqueles que não têm carro? É justo que o motorista da SUV use o asfalto, os semáforos e estacione sem nada pagar enquanto o passageiro de ônibus, para vir de Guaianases para o Centro de São Paulo, tenha que desembolsar 4,40 reais? Londres, Singapura e Nova York já estabeleceram cobranças dos usuários de veículos pelo uso da infraestrutura pública e estão empregando esses recursos para ampliar e melhorar o transporte público.

 

Essa discussão já foi superada nas rodovias. Nas principais estradas, o custo de sua manutenção é suportado exclusivamente pelos seus usuários. Não tem mais o menor eco na sociedade o discurso de eliminação dos pedágios. Todos já entenderam que esse modelo é muito mais justo. Recursos que eram drenados do orçamento governamental para a manutenção de estradas hoje podem ser alocados para outros serviços públicos. Alguém poderá dizer: mas eu já pago o IPVA. Lembrando que pagamento de imposto não tem relação com uso de infraestrutura pública. Você também paga IPTU e não tem água, luz, gás ou internet de graça por conta disso.


Por que não fazer essa discussão nas cidades? Por que não passar os custos de manutenção das vias de automóveis para os seus usuários e transferir esses recursos para investimentos no transporte público e/ou para redução do preço da tarifa, que beneficiaria muito mais gente, amplificaria e democratizaria o acesso, melhoraria o meio ambiente e diminuiria a tragédia de mortos e feridos no trânsito?

 

Notas:
[1]1 megajoule (Mj) = 1 milhão de joules; 1 joule (J) por segundo = 1 watt (W)
[2] A Prefeitura de São Paulo refez a medição de suas vias e concluiu que a extensão está próxima de 20 mil km

 


Sérgio Avelleda
é coordenador do Núcleo de Mobilidade Urbana do Laboratório Arq. Futuro de Cidades do Insper e diretor de Mobilidade Urbana do World Resources Institute (WRI). Foi secretário de Mobilidade Urbana e Transporte da Cidade de São Paulo (2017-2018).

 

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