"Gentileza urbana"? Não, obrigada

Discursos e jardins não me enganam... Arquiteta mostra a diferença entre "gentileza urbana" e o que na verdade é infraestrutura básica para o pedestre poder usar a cidade

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Fonte: Caos Planejado  |  Autor: Gabriela Tenorio*  |  Postado em: 09 de maio de 2025

Mercado imobiliário apropria-se do termo

Mercado imobiliário apropria-se do termo "gentileza urbana"

créditos: Reprodução

Um trabalho de reestruturação viária que avaliei recentemente denominou como “gentileza urbana” faixas de pedestres, calçadas, rampas, iluminação, lixeiras, sinalização. Comentei que aquilo não era gentileza urbana: era mobiliário urbano e infraestrutura mínima de que um pedestre precisa para utilizar a cidade com dignidade. Ou seja, não era um algo a mais, um mimo: era o básico.

 

“Eu reestruturei essa via e, como uma gentileza para você, pus postes de luz”? Ora, isso é como dizer: “Você pediu esse prato e, como uma gentileza para você, trouxe talheres”.

 

A gente não pode dizer que está fazendo uma gentileza urbana ao fazer o básico, sob pena de, daqui a pouco, a gente achar que fazer o básico é fazer um favor. Um espaço público bem estruturado para as pessoas é obrigação do poder público. 

 

Gentileza urbana de verdade está vinculada a ações voluntárias, desprendidas, levadas a cabo por pessoas preocupadas em contribuir para melhorar a cidade. No entanto, onde mais ouço falar de “gentileza urbana” é em propaganda de empreendimentos imobiliários que, muitas vezes, muito pouco ou nada contribuem para o espaço público circundante. 

 

Numa breve pesquisa na internet, vi que um prédio em Águas Claras-DF criou uma parede cega, mas disse que ela era uma “gentileza urbana”, pois seria um jardim vertical. Uma parede cega, verde ou não, nunca é gentil: é um desserviço para o caminho do pedestre. 

 

Um condomínio (murado, claro) em Araraquara-SP propôs uma praça na frente e a chamou de “gentileza urbana”. Havia quase 100 metros no perímetro do lote com vegetação de sombra, mas a primeira coisa que a empresa responsável fez foi cortar tudo para colocar seus tapumes. Fazer muros e cortar árvores que, ao que parece, poderiam perfeitamente ser incorporadas ao futuro projeto da praça não é nada gentil. 

 

Discursos e jardins...

Nesse artigo, ou a partir de 1h22 deste vídeo, descrevo as oito características de um edifício gentil. Elas não têm a ver com gentileza urbana: dizem respeito às fachadas dos prédios e evidenciam como um edifício realmente contribui com o espaço público. O que ocorre com muitos empreendimentos é que fazem projetos que não estão nem aí para a cidade, não contemplam nenhuma daquelas oito características, e depois vêm, com discursos e jardins, trazer o “conceito” de gentileza urbana. 

 

Eu não sou nada contra a iniciativa privada promover melhorias reais no espaço público. Não me incomodo que ela o faça para valorizar seus imóveis, ou que se autopromova com isso (só me incomodo se ela achar que tem que colocar seu nome em cada banco que ela forneceu: o usuário de um espaço público é um cidadão, não um consumidor). Agora, se as “melhorias” propostas forem inócuas ou apenas artifícios para mascarar a hostilidade das interfaces dos seus empreendimentos, pelo menos tenham a dignidade de não as chamar de gentileza urbana. 

 

Nessa minha breve pesquisa, descobri, encantada, que o Instituto de Arquitetos do Brasil/IAB-MG criou, em 1993, o Prêmio Gentileza Urbana. Segundo o site, ele estimula “iniciativas diversas, tanto de pessoas físicas quanto jurídicas, que contribuem para a melhoria da qualidade de vida urbana. A ideia consiste em premiar e valorizar os pequenos atos, as pequenas atitudes dos cidadãos que colaboram para deixar a vida nas cidades cada dia melhor. Gentileza Urbana são atitudes, gestos, intervenções que propiciem um novo olhar sobre a cidade, promovendo a preservação do seu patrimônio cultural e natural e ampliando o conceito de cidadania”. 

 

É inspirador ver essas 10 ações ganhadoras do prêmio em 2004. Isso sim é gentileza urbana. É essa que a gente quer. 

 

*Gabriela Tenório é arquiteta, professora da área de urbanismo da FAU/UnB. Adora levantamento de campo, espaços públicos e ver gente na rua. 

 

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