Um trabalho de reestruturação viária que avaliei recentemente denominou como “gentileza urbana” faixas de pedestres, calçadas, rampas, iluminação, lixeiras, sinalização. Comentei que aquilo não era gentileza urbana: era mobiliário urbano e infraestrutura mínima de que um pedestre precisa para utilizar a cidade com dignidade. Ou seja, não era um algo a mais, um mimo: era o básico.
“Eu reestruturei essa via e, como uma gentileza para você, pus postes de luz”? Ora, isso é como dizer: “Você pediu esse prato e, como uma gentileza para você, trouxe talheres”.
A gente não pode dizer que está fazendo uma gentileza urbana ao fazer o básico, sob pena de, daqui a pouco, a gente achar que fazer o básico é fazer um favor. Um espaço público bem estruturado para as pessoas é obrigação do poder público.
Gentileza urbana de verdade está vinculada a ações voluntárias, desprendidas, levadas a cabo por pessoas preocupadas em contribuir para melhorar a cidade. No entanto, onde mais ouço falar de “gentileza urbana” é em propaganda de empreendimentos imobiliários que, muitas vezes, muito pouco ou nada contribuem para o espaço público circundante.
Numa breve pesquisa na internet, vi que um prédio em Águas Claras-DF criou uma parede cega, mas disse que ela era uma “gentileza urbana”, pois seria um jardim vertical. Uma parede cega, verde ou não, nunca é gentil: é um desserviço para o caminho do pedestre.
Um condomínio (murado, claro) em Araraquara-SP propôs uma praça na frente e a chamou de “gentileza urbana”. Havia quase 100 metros no perímetro do lote com vegetação de sombra, mas a primeira coisa que a empresa responsável fez foi cortar tudo para colocar seus tapumes. Fazer muros e cortar árvores que, ao que parece, poderiam perfeitamente ser incorporadas ao futuro projeto da praça não é nada gentil.
Discursos e jardins...
Nesse artigo, ou a partir de 1h22 deste vídeo, descrevo as oito características de um edifício gentil. Elas não têm a ver com gentileza urbana: dizem respeito às fachadas dos prédios e evidenciam como um edifício realmente contribui com o espaço público. O que ocorre com muitos empreendimentos é que fazem projetos que não estão nem aí para a cidade, não contemplam nenhuma daquelas oito características, e depois vêm, com discursos e jardins, trazer o “conceito” de gentileza urbana.
Eu não sou nada contra a iniciativa privada promover melhorias reais no espaço público. Não me incomodo que ela o faça para valorizar seus imóveis, ou que se autopromova com isso (só me incomodo se ela achar que tem que colocar seu nome em cada banco que ela forneceu: o usuário de um espaço público é um cidadão, não um consumidor). Agora, se as “melhorias” propostas forem inócuas ou apenas artifícios para mascarar a hostilidade das interfaces dos seus empreendimentos, pelo menos tenham a dignidade de não as chamar de gentileza urbana.
Nessa minha breve pesquisa, descobri, encantada, que o Instituto de Arquitetos do Brasil/IAB-MG criou, em 1993, o Prêmio Gentileza Urbana. Segundo o site, ele estimula “iniciativas diversas, tanto de pessoas físicas quanto jurídicas, que contribuem para a melhoria da qualidade de vida urbana. A ideia consiste em premiar e valorizar os pequenos atos, as pequenas atitudes dos cidadãos que colaboram para deixar a vida nas cidades cada dia melhor. Gentileza Urbana são atitudes, gestos, intervenções que propiciem um novo olhar sobre a cidade, promovendo a preservação do seu patrimônio cultural e natural e ampliando o conceito de cidadania”.
É inspirador ver essas 10 ações ganhadoras do prêmio em 2004. Isso sim é gentileza urbana. É essa que a gente quer.
*Gabriela Tenório é arquiteta, professora da área de urbanismo da FAU/UnB. Adora levantamento de campo, espaços públicos e ver gente na rua.
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