A mobilidade urbana por bicicleta e a escolha do modo de transporte pelo ser humano

Com o presente texto, espera-se chamar a atenção para a importância da bicicleta como elemento da mobilidade urbana

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Fonte: Revista Bicicleta  |  Autor: Giselle Noceti Ammon Xavier  |  Postado em: 06 de fevereiro de 2013

Os benefícios da bicicleta

Os benefícios da bicicleta

créditos: Viaciclo

 

O comportamento do ser humano é influenciado pelo tipo de oferta de transporte que lhe é disponibilizada e pela valorização ou desvalorização dos mesmos - além do que, toda a sociedade é influenciada pelas facilidades oferecidas pelas tecnologias, e pela mídia, favorecendo o sedentarismo.

 

Com o presente texto, espera-se chamar a atenção para a importância da bicicleta como elemento da mobilidade urbana, contextualizando a falta de políticas públicas em favor deste modal de transporte.

 

A escolha dos indivíduos para a sua mobilidade urbana

Em um artigo de Boncinelli (2005), traduzido por Selvino Assman, encontra-se uma boa "razão" do porque de muitos de nossos comportamentos. Segundo o autor, a evolução cultural da sociedade garante, e solicita de nossa parte, uma grande variedade de comportamentos possíveis e, portanto, uma grande liberdade, que suscita questionamentos tais quais: Como, onde e quando inicia, no interior do nosso corpo, o processo que conduz ao cumprimento de uma ação? Quem e o que decide nossas ações? De onde parte a decisão de realizar uma ação não obrigada? E quem toma tal decisão? No que diz respeito ao comportamento cotidiano, instante por instante, há uma limitação da liberdade de ação que se relaciona a uma espécie de determinismo (neuro) fisiológico.

 

Os sentidos representam uma janela muito estreita e seletiva do nosso eu para o mundo, uma percepção parcial e personalizada, que permite ver algumas coisas e não outras, e escutar e ouvir algumas coisas e outras não. Não só os receptores sensoriais periféricos, mas todo o nosso aparelho perceptivo age a partir de um glossário limitado e descontínuo, não estando preparados para receber qualquer resposta, mas apenas uma ou outra de um conjunto restrito de respostas possíveis. Em síntese: como indivíduos, somos animais, uma evolução biológica milenar cega e oportunista; enquanto isso, o coletivo humano, e com ele o indivíduo, mostra um caráter histórico, fruto de uma continuidade cultural, longitudinal e transversal.

 

A escolha dos indivíduos, no que se refere a realizar deslocamentos motorizados ou ativos (andar a pé e andar de bicicleta), sofre influência do desenho urbano, do tipo de ocupação do solo e da presença de infra-estrutura adequada ou não (por exemplo, calçadas, ciclovias [1] e estacionamentos seguros para as bicicletas). Mais do que estes aspectos, que já haviam sido ressaltados por Jackson (2002); Saelens, Sallis e Frank (2003), entre outros, e citados em trabalhos anteriormente publicados por esta autora e co-autores, a recente revisão de Pucher, Dill e Handy (2010) evidencia a importância da integração com os transportes públicos, do processo educativo e dos programas de marketing (valorizando a via como um espaço público e de acesso democrático, e a mobilidade ativa como forma de coesão social, saúde individual e saúde das cidades), da facilitação de acesso ao uso e à aquisição de bicicletas (por exemplo bicicletas públicas, de aluguel, e esquemas de financiamento para a aquisição das mesmas), e a importância das questões legais (por exemplo leis que protegem e dão prioridade ao modo de transporte a pé e por bicicleta e restringem as facilidades ao uso do veículo motorizado, o carro [2]).

 

Os estudos revisados mostram uma associação positiva entre intervenções específicas e o uso da bicicleta como transporte. Quase todas as cidades que adotaram intervenções abrangentes experimentaram um grande aumento no número de viagens por bicicleta. A conclusão do artigo destaca o papel crucial das políticas públicas pró-bicicleta.

 

Outro artigo de revisão, de Roy Shephard (2008), mais focado na importância da mobilidade urbana por bicicleta como elemento de promoção da saúde pública, confirma a necessidade de alterações substanciais no "ambiente construído" para que a bicicleta se torne uma opção de mobilidade urbana [3]. Neste trabalho, intitulado "É o uso da bicicleta como forma de mobilidade urbana a resposta para a saúde da população?" (Is Active Commuting the Answer to Population Health?), muitos estudos revisados evidenciam o quanto é saudável andar de bicicleta - saúde individual, coletiva, pública (pessoas mais saudáveis, redução de gastos com tratamentos de doenças crônico-degenerativas) e das cidades (redução de poluentes, ambiente viário com menos ruído, maior democracia no uso do espaço urbano, maior coesão social etc.).

 

No Brasil o maior número de usuários da bicicleta tem baixa renda e a utiliza por motivos econômicos (BRASIL, 2007). Mas no Reino Unido, Holanda e Dinamarca, de acordo com Horton, Cox e Rosen (2007), o uso da bicicleta como transporte é maior por aqueles que possuem carro. Portanto, não há uma relação direta entre poder economico e uso da bicicleta, mas a realidade de cada país necessita ser investigada.

 

Segundo o "Relatório Geral de Mobilidade Urbana" (ANTP, 2009), nas cidades brasileiras com população entre 60 e 100 mil habitantes, mais de 50% das viagens são realizadas a pé e por bicicleta, já nas cidades mais populosas este numero diminui e aumenta a utilização dos motorizados (transporte coletivo, carro e motocicleta). Mas, mesmo nas grandes cidades, o andar a pé é sempre dominante. A maioria dos municípios brasileiros é de pequeno porte (e não fez parte do relatório acima citado), mas embora não se tenha os dados em um relatório nacional, é comentado pelos especialistas em transporte, e já era citado no Caderno de Referência para elaboração de Plano de Mobilidade por Bicicleta nas Cidades (Brasil, 2007), que depois do andar a pé, a bicicleta é o veículo mais utilizado nestes municípios.

 

Andar de bicicleta é saudável. Os benefícios para a saúde ultrapassam os riscos de lesões no trânsito, contradizendo a falsa percepção de que a bicicleta é uma atividade perigosa (ou seja, é mais perigoso ser sedentário). Além disso, quanto mais aumenta o uso, mais seguro é andar de bicicleta (PUCHER e BUEHLER, 2008). A utilização da bicicleta como forma de deslocamento tem potencial para gerar o volume [4] (um mínimo de aproximadamente 1000 kcal) e a intensidade [5] (zona de treinamento cardiorrespiratório) de atividade física semanal que é recomendada para a manutenção da saúde. "O desafio, portanto, mantém-se em encontrar uma combinação adequada de aconselhamento e mudanças no desenho urbano, que vai atrair uma parcela substancial da população em geral a participar neste tipo de atividade saudável" (SHEPHARD, 2008, p.757).

 

As bicicletas podem não ser apropriadas para todo indivíduo, nem todos os tipos de deslocamentos, mas na maioria das cidades elas têm a capacidade de desempenhar um importante papel. Suas múltiplas vantagens fazem com que ela seja extremamente atrativa para viagens curtas e médias [6]. Devido a anos de apoio e investimento dos cidadãos e do poder público, as bicicletas são responsáveis por 20 a 30 por cento de todas as viagens em importantes cidades da Holanda, Dinamarca e Alemanha. Porém, sem o efetivo apoio do poder público, as bicicletas são marginalizadas por interesses mais poderosos do setor transportes (GARDNER, 1998).

 

 

Conforme Garrard et al., (2008), a infraestrutura para o uso da bicicleta é a chave do sucesso das políticas holandesas, dinamarquesas e alemãs para fazer o uso da bicicleta seguro e atrativo, conveniente e confortável para jovens e idosos, mulheres e homens, e para todos os níveis de habilidades, experientes ou não. Podem não ser suficientes, mas necessárias para permitir que a maioria da população utilize a bicicleta (GARRARD et al., 2008). Mas, para além da infraestrutura, o artigo de revisão de Pucher e Buehler (2008), enfatiza que a chave para o sucesso das políticas pró-bicicleta na Holanda, Dinamarca e Alemanha é a implementação coordenada de um conjunto de políticas [7] que se reforçam mutuamente, além do apoio a estas por meio de políticas restritivas ao uso do carro (transformando o uso do carro em pouco conveniente e caro).

 

Considerações finais

"A política de mobilidade tem por função proporcionar o acesso amplo e democrático ao espaço urbano. (...) Essa mobilidade urbana sustentável pode ser definida como o resultado de um conjunto de políticas de transporte e circulação que visam a priorização dos modos não-motorizados e coletivos de transporte, de forma efetiva, que não gere segregações espaciais, e seja socialmente inclusiva e ecologicamente sustentável. A Mobilidade Urbana Sustentável deve estar integrada às demais políticas urbanas, com o objetivo maior de priorizar o cidadão na efetivação de seus anseios e necessidades, melhorando as condições gerais de deslocamento na cidade" (BRASIL, 2006, p. 19).

 

Entendendo a via pública como parte de um território urbano - altamente disputado - onde a ocupação de espaço pela bicicleta depende de um ambiente favorável ao seu uso, surge a necessidade de compreensão dos fatores que interferem no processo de criação e implementação da política de mobilidade urbana e surge a pergunta: Se na maioria das cidades o deslocamento urbano é por meio do andar a pé (e nos municípios pequenos, também por bicicleta), por que as cidades são planejadas dando prioridade para o trânsito dos veículos motorizados e não para o das pessoas andando a pé ou de bicicleta?

 

A falta de prioridade às pessoas que se deslocam a pé e em bicicleta na apropriação do espaço urbano "via pública", demonstra a relação de poderes na sociedade de consumo. Dominando o território urbano destinado à circulação, os condutores dos veículos motorizados criam um ambiente inóspito para as pessoas que desejam mobilizar-se de uma forma simples, barata e eficiente para deslocamentos pequenos ou médios. De uma forma egoísta, invertem os valores sociais, negando o valor da vida.

 

Giselle Noceti Ammon Xavier é Professora do Centro de Ciências da Saúde e do Esporte - CEFID, coordenadora do grupo CICLOBRASIL, programa de Extensão e Pesquisa focado na mobilidade ativa (www.cefid.udesc.br/ciclo), da Universidade do Estado de Santa Catarina - UDESC). Doutora pelo Programa de Pós Graduação Interdisciplinar em Ciências Humanas - PPGICH, da Universidade Federal de Santa Catarina - UFSC (www.ppgich.ufsc.br). Diretora da VIACICLO - Associação dos Ciclousuários da Grande Florianópolis (www.viaciclo.org.br). Conselheira da União de Ciclistas do Brasil - UCB (www.uniaodeciclistas.org.br).

 

Notas:

[1] Refere-se aqui a "ciclovia" como um termo genérico, identificando-se todos os tipos de espaços especificamente destinados à circulação de bicicletas e as redes ou sistemas formados por estas (incluindo, inclusive, os complementos, como os estacionamentos para as mesmas, a integração com os transportes coletivos, o tratamento das interseções, baixas velocidades do tráfego de motorizados etc.). Para a distinção entre ciclovia, ciclofaixa, faixa compartilhada etc., ver: Caderno de Referência para elaboração de: Plano de Mobilidade por Bicicleta nas Cidades. Uma publicação do Programa Bicicleta Brasil (www.cidades.gov.br/bicicletabrasil), da Secretaria Nacional de Transporte e da Mobilidade Urbana - SeMob, do Ministério das Cidades (Disponível: http://www.cidades.gov.br/secretarias-nacionais/transporte-e-mobilidade/arquivos/Livro%20Bicicleta%20Brasil.pdf Acesso fev 2011).

 

[2] Carro, do grego auto, por si próprio, e do latim mobilis, mobilidade. De acordo com o Dicionário de Etimologia "carro" é um "veículo de rodas", do francês-normando carre, do Latim carrum, carrus (plural carra), originalmente "carruagem de guerra celta de duas rodas", do gaulês "karrus", do que significava o carro romano de duas rodas usado em guerras, e "carrus" vem do gaulês, karros, do proto-indo-europeu Ksors, cuja base é Kers, que significa "correr". A extensão para "automóvel" é de 1896 (Disponível: http://www.etymonline.com/index.php?term=car Acesso fev 2011). O autor do website, Douglas Harper, é um historiador, escritor, jornalista e professor baseado em Lancaster, E.U.A (Disponível: http://www.etymonline.com/columns/bio.htm Acesso fev 2011).

 

[3] Deixando claro que se tem consciência da discordância existente na literatura (e principalmente entre os cicloativistas, aqueles que promovem o uso da bicicleta como forma de mobilidade urbana) sobre a necessidade de segregação (espaços específicos para o deslocamento em bicicleta), ou não. Muitos autores, entre eles John Forester (ver suas publicações em http://www.johnforester.com/), afirmam que a criação de vias específicas para a bicicleta reduz a segurança dos ciclistas e mantém a prioridade aos carros na via pública.

 

[4] Ver: O quanto de atividades físicas você precisa?: Orientações para as atividades físicas Disponível: http://www.cdc.gov/physicalactivity/everyone/guidelines/index.html Acesso fev 2010).

 

[5] Ver: Atividades físicas gerais definidas por nível de intensidade (Disponível: http://www.cdc.gov/physicalactivity/downloads/PA_Intensity_table_2_1.pdf Acesso fev 2010).

 

[6] A bicicleta é mais utilizada para cumprir deslocamentos de pequenas (até 2,5 km) e médias distâncias (de 2,5 a 6,5 km) (ver Pucher e Buehler, 2008, já citados). Considerando que a velocidade de deslocamento (para o trabalho/escola/lazer) costuma se situar entre 14 e 18 km/h estas distâncias resultam em pedaladas de aproximadamente 10 a 30 minutos de duração (ver Hendriksen et al., 2000).

 

[7] Ver tabela do resumo de políticas coordenadas em Pucher e Buehler, 2008. Ver também outros artigos do autor em http://policy.rutgers.edu/faculty/pucher/


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