Uma cidade (quase) sem carros. Na Espanha

Capital da Galícia, Pontevedra investe em mobilidade ativa desde 1999. "Quem compra um carro não está comprando um pedaço do espaço público", diz o prefeito

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Fonte: El Diário  |  Autor: José Precedo/ El Diário*/ Mobilize (edição)  |  Postado em: 17 de julho de 2017

Calle Gutiérrez Mellado (Pontevedra)

Calle Gutiérrez Mellado, no centro de Pontevedra

créditos: Foto: Anxo Iglesias / El Diário

Em 2016 a polícia municipal de Pontevedra não emitiu nenhuma multa por excesso de velocidade. A mesma coisa ocorreu em 2015 e em 2014. Pontevedra não tem radares, nem acidentes mortais. O último aconteceu há quatro anos. Na década passada os acidentes graves foram reduzidos em 90%.

Nos anos em que outras capitais espanholas se enchiam de carros por estímulo do crédito fácil e da bolha imobiliária, os gestores públicos de Pontevedra apontaram o caminho inverso: cerca de 70% dos deslocamentos antes feitos de carro agora são percorridos a pé ou de bicicleta. E apenas três em cada dez pessoas que se movem pela cidade o fazem de carro. E, como se sabe, quando dois pedestres acidentalmente se chocam, raramente há feridos nesse tipo de acidente.

Também contra tudo o que se fez em toda a Espanha (e também no Brasil), nessas duas décadas em Pontevedra não se implantaram grandes shoppings ou outros centros comerciais fechados. E 72% dos moradores (e visitantes) faz suas compras a pé, sedundo revelou uma pesquisa recente realizada pela prefeitura. Somente 30% dos habitantes vão ao supermercado de carro. O centro da cidade ganhou mais 12 mil habitantes desde 2009 e cerca de 2 mil crianças de seis a doze anos vão todos os dias para a escola a pé, a maioria sozinhos. 

# A Prefeitura atua há quase 20 anos para afastar os carros das ruas

# Mortes no trânsito caíram de 30 (1996 a 2006) para 3 nos últimos dez anos

# Hoje 70% dos deslocamentos são feitos a pé ou de bicicleta

# As emissões de CO2 caíram em 70%

O êxito se explica em parte pela compacidade de Pontevedra, com apenas seis quilômetros quadrados, onde o trajeto mais longo se faz a pé em meia hora e quase todos os bairros estão a quinze minutos do centro. Não por acaso, a cidade adotou o mapa Metrominuto, que copia os padrões normalmente usados nos metrôs das grandes cidades para indicar as distâncias e tempos de caminhada entre diferentes locais. Lembra o mapa realizado em São Paulo pelo coletivo Sampapé...

O prefeito
Essa pequena revolução foi feita pelo prefeito Miguel Ánxo Fernández Lores, sem maioria absoluta e que liderou uma coalisão de partidos minoritários de esquerda que nunca havia governado nenhuma cidade da Galícia. Trata-se do BNG, um bloco de nacionalista e autonomista de partidos com maioria do Unión do Pobo Galego (União do Povo Galego) um partido que se declara marxista-leninista. “Do meu gabinete abro a janela e agora ouço as conversas das pessoas na rua, o que era impossível quando cheguei", declarou Lores antes de sair para o passeio com o jornalista do El Diário.  


Miguel Anxo Fernández Lores, prefeito de Pontevedra. 
Foto: Anxo Iglesias

Lores chegou ao poder em julho de 1999, depois de 12 anos de militância na oposição. Um mês depois, em agosto, assinou um decreto para eliminar todas as 500 vagas de estacionamento que existiam no centro histórico. Em seguida, numa única tacada, fez a pedestrianização de 300 mil metros quadrados desse centro. As medidas foram imediatamente questionadas, com campanhas e ações judiciais, mas acabaram sendo acolhidas pela população. E todos os recursos foram arquivados. 

“Houve protestos, mas eram ações políticas. Antes de iniciar qualquer projeto, nós organizávamos uma assembléia com os moradores e sempre havia alguém que ganhava espaço na imprensa, essa gente que usa determinados megafones. Daí, saíam notícias do tipo 'moradores se opõem'. Em reuniões com duzentas pessoas haviam duas pessoas que se opunham, mas elas ganhavam espaço na imprensa. Mas tínhamos o apoio da maioria das pessoas, que estavam a favor", lembra o prefeito. 

Comerciantes
Para quem acredita que o carro alimenta os negócios, ainda que o comércio local tenha sofrido com a crise que assolou a Espanha, em Pontevedra as baixas no comércio foram menores do que em outras cidades espanholas. Lores explica que mesmo os comerciantes que antes exibiam cartazes contra as mudanças agora defendem o afastamento dos carros. "Em uma das áreas que transformamos em jardim, nós pretendiamos deixar uma faixa de tráfego, mas as próprias pessoas na assembléia disseram que não era necessário. Na zona monumental, após a pedestrianização, quando aparecia um carro estacionado irregularmente os próprios moradores nos alertavam, porque haviam compreendido que a mudança era positiva para a cidade", completa o prefeito.

Lores defende que a única forma de recuperar espaço para as pessoas é tirar espaço dos veículos privados. Ele não acredita em rodízio de placas, nem em carros elétricos e controla também a circulação de ônibus de turismo e motos. “Roubamos espaço do carro privado. Se você tem estacionamento livre numa rua, você gera um tráfego estúpido de pessoas procurando vagas para estacionar. Isso também ocorre em zonas azuis, que não temos aqui", afirma. Um dado importante: nem o prefeito leva seu carro para o centro. E mesmo quando recebe uma visita oficial, Lores recomenda que os visitantes estacionem os veículos nas cercanias e completem o trajeto a pé. 

Atividades públicas
Pontevedra aprendeu também que não basta afastar os carros. "É necessário gerar atividade. Se não fazemos atividades culturais, se não deixamos as crianças ocuparem os espaços, tem-se a sensação de que nçao se ganhou nada. Mas, quando  se vê que tudo melhora, que a cidade está mais silenciosa, o ar mais limpo, que o comércio de rua volta a crescer, as pessoas aderem e defendem a mudança", diz  Miguel Lores. A primeira intervenção realizada em Ponteviedra contou com um apoio da organização Once (www.fundaciononce.es/), que tinha cem mil euros para um projeto de acessibilidade. "Pegamos o cem mil e fizemos bem mais do que a acessibilidade".

Na Praça de España, onde antes havia um semáforo e uma rotatória, os carros entravam e saíam e por ali passavam 26 mil carros por dia, hoje passam 500 ou mil. "Passam os que têm que passar. E como se faz o controle? Com a polícia, que adverte os motoristas sobre a proibição. Somente passam as pessoas que vão para uma garagem, buscar ou entregar um volume, entregar uma carga, em paradas rápidas, de no máximo meia hora", explica Lores.

O prefeito insiste em que não se trata apenas de pedestreanizar as ruas principais do centro. “A mobilidade deve inspirar toda a política municipal. Devemos estar todos, políticos, polícia municipal e vizinhança sintonizados”, explica Lores. E o mesmo ocorre com os trajetos escolares. O governo de Pontevedra defende que uma vez que o tráfego se ordena, que a velocidade está limitada a 30 km/h, esses trajetos são seguros para todos e, portanto, os pais podem confiar que seus filhos sigam sozinhos para a escola.



Metrominuto: mapa de distâncias (e tempos) de caminhadas na cidade

 

A mudança, com o passar do tempo, foi impregnando a cidade inteira. Uma das últimas iniciativas nasceu de alunos e professores de um colégio local. Não havia espaço interno para que as crianças pudessem brincar e praticar esportes e, com alternativa, o colégio propôs levar o recreio para a praça. Para isso foi necessário barrar o tráfego do entorno, o que foi conseguido em uma negociação entre a secretaria provincial de Educação e a prefeitura. Desde então o colégio Barcelos tem o melhor pátio de recreio de Pontevedra. Há ginástica na praça e brincadeiras nas pistas polidesportivas pintadas sobre a antiga rotatória do trânsito. 

Modelo para outras cidades
O modelo de Pontevedra recebeu prêmios em vários locais do mundo e a ONU reconheceu o valor da iniciativa com o Prêmio Hábitat, pela sua reordenação do espaço público. E New Orleans (EUA) estuda o modelo pontevedreano para recuperar o bairro francês, destruído pelo furacão Katrina. 

Miguel Lores acredita que a fórmula de Pontevedra é sim exportável, especialmente em cidades com até 180 mil habitantes, e que a experiência pode ser aplicada nos bairros das grandes cidades. Mas ele deixa claro que "não pretende dar lições a ninguém".

*Tradução e adaptação: Marcos de Sousa / Mobilize Brasil

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