É correto multar pedestres e ciclistas?

Especialistas em urbanismo, mobilidade e tráfego comentam a Resolução 706 do Contran. Necessidade de educação e formação é consenso

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Fonte: Mobilize Brasil  |  Autor: Marcos de Sousa / Regina Rocha | Mobilize Brasil  |  Postado em: 30 de outubro de 2017

É correto multar pedestres e ciclistas?

Resolução 706: pedestres e ciclistas na mira

Renata Falzoni, Meli Malatesta, Eduardo Vasconcellos, Horácio Figueira, Luiz Célio Bottura, Ramiro Levy e Thiago Benicchio discutem a viabilidade de aplicação da norma, os problemas de falta de informação para a população-alvo e a carência de infraestrutura urbana para que as pessoas possam se deslocar a pé e de bicicleta sem ferir o Código de Trânsito Brasileiro. O próprio CTB foi colocado em discussão por alguns dos entrevistados 

 

Renata Falzoni
Arquiteta e urbanista, cicloativista e autora do portal Bike é Legal

"É um retrocesso. Em vez de discutir essa resolução, que nasce de uma cultura do século passado, a sociedade deveria estar debatendo uma renovação do Código de Trânsito Brasileiro, uma legislação de 25 anos, anterior à Política Nacional de Mobilidade. No artigo 254 está escrito que 'é proibido utilizar-se da via em agrupamentos capazes de perturbar o trânsito, ou para a prática de qualquer folguedo, esporte, desfiles e similares', ou seja que uma criança não pode jogar bola na rua. Isso vai contra toda a visão contemporânea da cidade como espaço de convivência, de compartilhamento de espaços.

A resolução do Contran acaba reforçando a ideia de que as vias são para uso exclusivo dos carros. No Brasil, os pedestres são frequentemente obrigados a circular nas pistas por falta de calçadas. Ou ainda, são obrigados a atravessar a rua em locais sem faixas, porque frequentemente elas não existem ou são muito distanciadas. Temos que ter muita calma antes de penalizar quem caminha ou pedala. Por exemplo, às vezes eu prefiro pedalar um quarteirão no contrafluxo para evitar uma rua mais movimentada e perigosa. E quando encontro um pedestre ou um cadeirante andando na ciclovia eu tenho que respeitá-lo. Deve-se multar esse pedestre, esse cadeirante? Claro que não...ele está ali porque a calçada é ruim e porque aquela faixa é única parte da via que tem continuidade.  Isso tudo não quer dizer que eu seja contra a fiscalização e as multas de trânsito, mas temos que oferecer infraestrutura, informação e depois fiscalizar e punir."
Renata Falzoni também falou sobre o assunto em sua participação na CBN/SP. Veja vídeo.

 

Luiz Célio Bottura
Engenheiro e Consultor de Transportes



"A possibilidade de multar pedestres e ciclistas está no Código de Trânsito Brasileiro, mas todas as pessoas de competência e juízo que já passaram pelo Contran sabem que isso é impraticável
por aqui, pelo menos por enquanto. Veja que em São Paulo (e as outras cidades são muito piores) não tem nem 10% das faixas de pedestres que deveria ter. A lei diz que o pedestre deve atravessar na faixa de segurança mais próxima a 50 metros, mas nossas vias não têm faixas nem a cem nem a 300 metros.

Outro ponto a considerar é que na maior parte das ruas e avenidas o tempo de travessia dos semáforos de pedestres é muito limitado e como a população está ficando mais velha, na prática essas travessias se tornam impossíveis . Antes de aplicar a multa, seria necessário que o poder público fizesse sua parte e instalasse toda a infraestrutura de circulação para pedestres. É preciso coerência. Os caras que estão lá no Contran são almofadinhas que nunca colocaram os pés no chão. É mais uma demagogia, para mostrar serviço e que infelizmente pode virar piada."


Eduardo Vasconcellos
Engenheiro, sociólogo, consultor de mobilidade urbana

"Todas as pessoas que usam as ruas têm que respeitar as regras do trânsito; isso é inquestionável. No entanto, sabemos que nem todos os  cidadãos têm esse treinamento. Essa formação é dada somente aos condutores de veículos motorizados,  em especial os profissionais. Existe um erro básico de desigualdade de informação e formação e, portanto, não é possível fiscalizar veículos e pedestres com o mesmo rigor. Seria necessário equiparar a formação nas escolas, nas comunidades, via redes sociais, tevês, e outros modos de comunicação. Do jeito que está a resolução penaliza o elo mais frágil do trânsito.

Os dois modos incluídos na Resolução 706  - pedestre e bicicleta - nunca tiveram relevo nas preocupações públicas, nem tiveram seus direitos garantidos. A sinalização para pedestres é muito ruim, calçadas não existem e as prefeituras têm demonstrado que não querem assumir a manutenção desses passeios. Em relação aos ciclistas, a infraestrutura já existe: onde não existem ciclovias, o lado direito das ruas é sua faixa preferencial. Quanto ao Código de Trânsito Brasileiro, acho que sua constituição foi muito importante para o país, melhorou a regulamentação e continua atual. O código merece uma revisão apenas na abordagem sobre o uso de motocicletas, hoje o principal gerador de acidentes de trânsito."

 

Meli Malatesta
Arquiteta e urbanista, especialista em mobilidade atiba e blogueira do Pé de Igualdade

"...Ao confrontarmos as condições do ambiente de caminhada nas cidades brasileiras e da dependência que as cidades têm de políticas que estimulem a caminhada para a sua sobrevivência, esta medida além de ser extremamente iníqua, vem na contramão do que acontece hoje na maior parte do mundo civilizado. Nelas se incentiva a população deixar o carro em casa, usar o transporte público e pedalar. Tudo para que as cidades fiquem menos poluídas, mas amigáveis e com sua população mais saudável. 

A Resolução é também descabida porque quem anda a pé não passa por processo de habilitação para aprender como se comportar na via, seus direitos e deveres.  Assim, autuar uma pessoa que não sabe onde e porque errou, é no mínimo impróprio e injusto. Antes de pensar em penalizar os pedestres, os conselheiros do Conatran deveriam buscar a obrigatoriedade da Educação de Trânsito na rede escolar nacional, pelo menos no currículo escolar básico e secundário. 

Recomendo que os responsáveis que prepararam, aprovaram e pretendem colocar em prática a Resolução 706 reflitam bem sobre o que isto significa. É claro que todo comportamento inadequado e irregular merece ser punido quando não tenha justificativa. Mas, neste momento, as autuações de infrações relativas à Mobilidade a Pé são prematuras e certamente não conseguirão os resultados pretendidos." (Trecho extraído de seu post no blog Pé de Igualdade)

 

Horácio Figueira
Consultor, doutor em engenharia de transportes

"Não é hora, de modo algum, de pensar em multas ou outras penalizações a pedestres e ciclistas, já que não há fiscalização eficiente que dê conta das inúmeras infrações cometidas pelos carros no trânsito, nem há ações, campanhas, que garantam a segurança das pessoas nas vias e cruzamentos de nossas cidades.

Uma das  exigências da lei que está para entrar em vigor, a de que só é permitido ao pedestre atravessar na faixa, é insensata e nem amparo legal tem, já que esse direito está previsto no artigo 69 do CTB, onde se lê que o pedestre tem sim direito de atravessar em qualquer parte da via desde que não encontre condições de travessia e não haja faixa a uma distância razoável de onde está. Só quem nunca ficou aguardando o longo tempo ('tempo imoral') que um semáforo leva para abrir pode criticar a perda de paciência dos pedestres. Os semáforos não dão o tempo necessário ao pedestre, e a CET parece só se importar com não interromper o fluxo do trânsito."

 

Thiago Benicchio
Gerente de Transportes Ativos do ITDP Brasil

"Quem anda a pé ou de bicicleta está muito longe de ter seus direitos respeitados e multar não é o foco que vai melhorar as condições de mobilidade e nem a segurança. Fiscalizar a velocidade, o uso de bebida entre motoristas seriam medidas bem mais eficientes. A resolução está dentro das atribuições do Contran e teoricamente vem completar o que está previsto no Código de Trânsito Brasileiro, mas ainda que esteja dentro da legalidade, não é a medida mais adequada para melhorar a mobilidade e reduzir as mortes no trânsito, principalmente porque as cidades têm um desequilíbrio enorme entre o que é oferecido para os carros e aquilo que sobra para pedestres e ciclistas. Os motoristas reclamam, com razão, dos buracos no asfalto, mas certamente tem muito mais buracos, degraus e outros obstáculos nas calçadas do que nas vias. E também, a condição para a circulação dos ciclistas nas ruas é muito inferior à dos veículos motorizados. Há, ainda o aspecto da formação dos condutores, porque os CFCs não desenvolvem uma educação inclusiva, não formam motoristas conscientes, que considerem a prioridade ao pedestre nas ruas e a bicicleta como um veículo que tem o direito de circular na via. Com essa resolução, o Contran infelizmente reitera essa visão preconceituosa, que ainda está presente na sociedade."

 

Ramiro Levy
Arquiteto e urbanista, coordenador de Projetos e Pesquisas da ONG Cidade Ativa

"É uma bizarrice anacrônica que estava no Código de Trânsito Brasileiro de 1997, mas que vai contra o que está previsto na Política Nacional de Mobilidade Urbana de 2015. É um tipo de decisão que não poderia ser tomada sem uma discussão mais ampla com a sociedade. Deveria haver uma consulta pública, já que isso afeta todas as pessoas sem distinção, pois todos somos pedestres. Também vejo problemas na aplicação prática dessa regulamentação.
Se a fiscalização de trânsito já é falha em relação aos veículos motorizados, que são os grandes causadores de mortes e lesões no trânsito, não acredito que os agentes de trânsito terão condições de fiscalizar também os pedestres e ciclistas. Esta resolução vai contra o que está na Política Nacional de Mobilidade Urbana, que prioriza a mobilidade ativa, e também contra as políticas mundiais de mitigação das emissões de carbono. Acho que não trará nenhum ganho para a segurança no trânsito e acho inviável que seja implementado na prática.
É importante ressaltar que alguns pedestres e ciclistas que se arriscam em práticas inseguras o fazem por falta de alternativas, principalmente em relação à infraestrutura adequada e que priorize os modos ativos. Por exemplo, nos cruzamentos é comum que motoristas estacionem bem perto das esquinas - o que deveria ser proibido  - e isso impede a visão do trânsito e obriga o pedestre a entrar na pista para ver a possibilidade de atravessar a rua. Esse pedestre deveria ser multado?" 

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