Destaque da X Bienal de Arquitetura de São Paulo, encerrada neste mês, o vídeo e instalação "Carrópolis", produzido pelo grupo vapor 324, conseguiu impressionar o público da mostra com um trabalho que é, a um só tempo, sensível e documental, contundente e revelador dos impactos do carro na vida das cidades, sobretudo a partir da segunda metade do século passado.
Thomas Frenk, membro da vapor 324, conta que o convite para a realização desse trabalho partiu dos curadores da Bienal, que tinham uma série de documentos, vídeos e fotos, e queriam dar uma unidade a esse material. "O que fizemos foi transformar uma coleção estática de telas, com o tema do carro, em um produto dinâmico". O público da Bienal pode ver, de uma arquibancada, cenas como a do ex-prefeito Paulo Maluf apresentando sua "grandiosa obra", o Minhocão, que ele dizia ser uma nova solução de sistema viário para São Paulo.
Veja o texto da Bienal sobre o vídeo Carrópolis:
"O automóvel transformou profundamente as cidades a partir do fim da Segunda Guerra Mundial, quando os produtos de consumo foram se tornando cada vez mais acessíveis às massas. Assim como as enceradeiras, os liquidificadores e os aparelhos de televisão mudaram a vida doméstica, os carros modificaram a paisagem urbana, acrescentando agilidade e praticidade ao cotidiano das pessoas num tempo em que a gasolina era muito barata. E, mais do que isso, tornaram-se o principal objeto de desejo, moldando o imaginário de muitas gerações. O automóvel era, então, um signo de poder, liberdade e ascensão social, apontando para um futuro limpo e ordenado, feito de torres conectadas a vias amplas e atravessadas por máquinas velozes. Daí vieram Detroit, Los Angeles, Atlanta, Houston, Dallas, Brasília.
Acontece que a liberdade proporcionada pelo automóvel individual só funciona bem quando beneficia um número limitado de pessoas. No momento em que o carro se generaliza, o trânsito entope as ruas, os espaços públicos são sacrificados por obras viárias cada vez mais áridas e a mancha urbana se desmancha nos subúrbios: nos bairros-dormitórios, nas favelas, nos conjuntos habitacionais de baixa renda e nos condomínios de luxo. Assim, outros programas se instalam no coração das cidades, como bolsões de estacionamentos e edifícios-garagem, feitos para receber os novos cidadãos mecânicos. Ao mesmo tempo, antigos programas se suburbanizam: hotéis dão lugar a motéis, cinemas se tornam drive-ins, letreiros publicitários mudam de escala e viram outdoors e os centros comerciais se metamorfoseiam em shopping centers. A cidade se funde com a estrada, como mostra a lição de Las Vegas. E, quanto mais crescem as vias expressas, os viadutos e os túneis, mais o lucro da indústria automobilística tem uma participação destacada na economia dos países, lastreada no poder econômico do petróleo.
Idealmente, o carro é uma máquina capaz de nos transportar de forma ágil e confortável, permitindo ao condutor o dom do livre-arbítrio, isto é, a possibilidade de mudar de planos ao sabor das solicitações cada vez mais flutuantes da vida contemporânea. Ocorre que essa máquina pesada e movida a combustível fóssil não renovável não trafega por ondas imateriais, como as de telefonia. Está claro, portanto, que não será possível construirmos cidades mais justas e habitáveis se não invertermos a ordem das prioridades, privilegiando a mobilidade coletiva ao invés da individual. Transporte público de qualidade foi a pauta inicial das manifestações de junho no Brasil, focando a mobilidade como nossa condição essencial de direito à cidade. Não é o caso de condenarmos o carro em si, mas o uso irresponsável que fazemos dele. A expressão da livre iniciativa individual se tornou estagnação suicida."
Assista ao vídeo Carrópolis: