Em memória a Nelson Freire

Thatiana Murilo, do Caminha Rio, homenageia o artista que o mundo perdeu nesta semana, dois anos depois de cair em uma calçada, no Rio de Janeiro

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Fonte: Caminha Rio  |  Autor: Thatiana Murilo  |  Postado em: 02 de novembro de 2021

Nelson Freire, em foto de2019

Nelson Freire, em foto de2019

créditos: Divulgação


Em outubro de 2019, o pianista Nelson Freire fraturou o úmero quando tropeçou em um buraco, no calçadão na Barra da Tijuca. Amigos diziam que ele sofria por não conseguir mais tocar piano. Ele morreu nesta segunda-feira (1º), mas o buraco que provocou o acidente continua, infelizmente, no mesmo lugar. Reproduzimos a seguir um belo texto da companheira Thatiana Murilo, lutadora incansável pela melhoria da acessibilidade nas ruas deste país 


"Sinfonia para pedestres nº1 e o meu adeus a Nelson Freire

Querido Nelson, são sete e meia da noite de uma segunda-feira chuvosa no Rio. As rádios e os jornais passaram o dia anunciando tua partida repentina. Minha mãe está bem triste pois ela te venerava. Ela não perdia um concerto teu - e quando isso acontecia era porque os ingressos já estavam esgotados. Aliás, devo à minha mãe o gosto pela música clássica e dezenas de momentos de intensa felicidade assistindo a feras como você. Principalmente no Theatro Municipal.

 

Hoje mencionaram novamente o teu tombo. Lembro do dia que você caiu no calçadão como se fosse ontem. Eu estava na Firjan, em Botafogo, assistindo a um evento sobre trabalho na maturidade. Um dos palestrantes era o Mórris Litvak, fundador de uma empresa chamada Maturi. Ele havia acabado de contar uma história pessoal sobre a avó, a quem era muito ligado, e como um tombo na rua acabou limitando a vida dela. Uma senhora ativa que trabalhava e perdeu a qualidade de vida por causa de uma queda na calçada.

 

Sentada no auditório e futucando o celular entre uma palestra e outra vi a notícia. Fiquei muito abalada Nelson, muito. Afinal era você, a paixão artística da minha mãe, pianista consagrado no mundo e patrimônio imaterial do Brasil. Mas não era só isso. A tua queda - assim como o tombo de tantas outras pessoas que caem desse jeito - doeu em mim por tabela. Tenho me esforçado em lutar aqui na cidade por condições de caminhabilidade mais dignas - pensando principalmente nas pessoas mais frágeis, mais idosas, que a gente sabe que não vão se recuperar de uma fratura com facilidade. É um trabalho difícil.

 

Nesses dois anos pensei diversas vezes em você. A pandemia nos afastou das salas de concerto e das notícias da música clássica, mas eu me perguntei se você tinha se recuperado do braço e se já estava tocando o teu piano de novo. Hoje li em alguns sites que não, e que você ficou até bem triste depois do acidente. Como lamento. Imagino que todos os dias muita gente caia e se machuque tropeçando em buracos e pedras soltas, mas o assunto não é levado a sério como deveria.


O tempo não vai voltar. Vá brilhar no céu e se possível faça uma sinfonia para os pedestres daqui. Tenho esperanças de que um dia, andando em ruas mais dignas e acessíveis, serei capaz de ouvir essas notas alegres. Andante. Andante moderato. Obrigada por ter tocado o mundo com o teu talento."




Thatiana Murillo é professora de espanhol e Cofundadora da organização Caminha Rio

 

 

Veja e ouça um vídeo com Nélson Freire
tocando a cantata Jesus Alegria dos Homens,
de Herz und Mund und Tat und Leben, escrita por Johann Sebastian Bach 

 

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