"Subúrbio, Centro e Zona Sul parecem ser cidades diferentes"

Especialista em transportes urbanos, coordenadora de Gestão da Mobilidade do ITDP, a geógrafa Lorena Freitas aborda as várias realidades da mobilidade no Rio de Janeiro

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Fonte: Mobilize Brasil  |  Autor: \Marcos de Sousa/ Mobilize Brasil  |  Postado em: 08 de julho de 2022

Avenida Brasil e a obra interminável do BRT Transb

Avenida Brasil e a obra interminável do BRT Transbrasil

créditos: Fernando Frazão / Agência Brasil


Lorena Freiras é geógrafa formada pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), mestre em Engenharia de Transportes pelo Programa de Engenharia de Transportes (Coppe/UFRJ) e doutoranda no mesmo programa, onde pesquisa sobre a mobilidade de deficientes físicos em centros urbanos. Atua no ITDP como coordenadora de Gestão da Mobilidade e integra o Núcleo de Planejamento Estratégico de Transporte e Turismo (Planett/UFRJ), no qual participa de pesquisas direcionadas a mobilidade ativa e sustentável, que visam o desenvolvimento de cidades mais caminháveis, clicáveis e mais humanas. 

Lorena Freitas, entre o Subúrbio e o Centro do Rio. Foto: Arquivo pessoal

 

Como você costuma se deslocar na cidade onde mora, o Rio de Janeiro?
Normalmente uso o transporte público nos meus deslocamentos e, sempre que possível, o sistema de bicicletas compartilhadas. Eu cresci em um subúrbio carioca, na Zona Oeste, e desde que me tornei adulta tive a oportunidade de residir em ouras áreas da cidade, mais especificamente no Centro e na Zona Sul. Nessas andanças notei que há uma enorme diferença  na mobilidade quando comparamos os bairros do subúrbio e as áreas centrais. Na minha percepção, parecem ser duas cidades diferentes. Morando no Centro, minha experiência mostrou o quanto a caminhada é possível quando temos oferta de oportunidades. Ir a teatros, museus, festas, restaurantes e também a consultas médicas e ao trabalho a pé é algo que além de tornar a vivência na cidade muito mais agradável, também representa uma grande economia no final do mês. Percebo também que a oferta de transportes públicos é muito mais abrangente nas áreas centrais.

 

Poderia explicar essa "abrangência"?
No subúrbio do Rio, pela minha experiência, por vezes é difícil chegar a locais fora do eixo subúrbio-centro. Explicando melhor, nos subúrbios, a oferta de transporte para locais próximos costuma ser mais escassa e irregular do que para ir até o Centro.
E há algumas preocupações que estão sempre presentes na mobilidade de quem vive no subúrbio: o planejamento, os trens e a avenida Brasil.
Vamos começar pelo planejamento: ao sair de casa, para qualquer atividade, é necessário calcular um tempo relativamente “folgado” para tentar garantir a pontualidade. Isso porque a gente nunca sabe exatamente quanto tempo o ônibus ou o trem vão demorar para passar, e em que condições passarão. Só quem pega o trem às 6 horas da manhã – ou antes – entende o sofrimento que é conseguir entrar...E a mesma coisa acontece no pico da tarde/noite. E isso tem um custo. Um custo de tempo de vida, de abdicar de outras atividades, de cansaço. São prejuízos que poderiam ser minimizadosse os bairros suburbanos oferecessem mais opções, mais serviços, sem que as pessoas tivessem a necessidade de sair para uma uma longa e imprevisível viagem.

 

Você também falou nos trens e na avenida Brasil...
Em relação aos trens, meu relato é afetivo e também de revolta. As condições a que os passageiros são submetidos, especialmente nos horários de pico, são degradantes e aqui não estou me referindo apenas à lotação. Trens e metrôs lotados são uma realidade na maioria das cidades grandes do mundo. Refiro-me à falta de previsibilidade, às viagens em trens de janelas fechadas e sem ar-condicionado, e aos assédios cotidianos sofridos pelas mulheres (sim, infelizmente passei por isso diversas vezes, e não posso apontar uma amiga suburbana que nunca tenha passado). Também não posso deixar de mencionar o valor da tarifa, que é um custo muito alto, fora da ideia de modicidade tarifária, e que restringe a circulação de muita gente, inclusive para buscar empregos e melhores condições de vida. Já a minha percepção sobre a avenida Brasil é de que, sendo uma avenida tão importante para os movimentos pendulares na mobilidade carioca, ela precisa de priorização para o transporte público. Uma priorização que atenda aos ônibus garantindo a segregação real do fluxo de carros e motos (em toda sua extensão dentro da cidade). A avenida realmente torna o tempo de viagem imprevisível, além de ser muito hostil para quem precisa realizar baldeações no caminho. Nas áreas periféricas o acesso a tudo é de fato mais difícil e por isso é fundamental garantir confiabilidade e qualidade ao transporte público, incluindo melhores conexões entre destinos no próprio subúrbio, além de ampliar as oportunidades dos subcentros urbanos.

 

O Rio de Janeiro sediou dois grandes eventos esportivos, em 2014 e 2016. E entre as capitais, foi a cidade que mais recebeu investimentos em mobilidade, com teleféricos, vlt, brt, renovação dos trens, nova linha de metrô, ciclovias etc. Mas, aparentemente, essa infraestrutura não conseguiu se consolidar como uma rede de mobilidade. É isso mesmo? Por que, em sua visão, isso ocorreu?

Os eventos de fato atraíram investimentos que foram convertidos em melhorias na mobilidade. Contudo, alguns projetos de transportes de maior capacidade não foram suficientes para atender às necessidades da população que reside em áreas mais distantes. Aqui eu destaco os atrasos nas obras do BRT TransBrasil, que até hoje, não teve sua operação iniciada. A cidade, no entanto, viu uma perda da qualidade dos sistemas de transportes públicos coletivos nos últimos anos, fazendo com que o investimento da época não garantisse uma real melhoria na qualidade de vida da população no médio/longo prazo.


Mas, além da obra interminável do BRT Transbrasil, houve problemas que foram provocados pelas próprias empresas de transporte, além das depredações de estações. Os BRTs estão bem sintonizados com as necessidades de deslocamento da população?
Eles podem ser uma opção interessante para a mobilidade urbana, por terem uma implementação mais barata quando comparada aos sistemas sobre trilhos, e com uma capacidade maior do que a dos ônibus comuns. Outro ponto positivo do sistema é sua flexibilidade de adaptação ao território. Por trafegarem em pistas segregadas também viabilizam viagens mais rápidas e menos poluentes. Logo, quando bem planejado e implementado, pode ampliar o acesso da população às atividades. A estratégia no Rio visou a atender áreas menos favorecidas pelos sistemas de transportes, como a Zona Oeste e a Zona Norte. Nos últimos anos o sistema sofreu com uma forte deterioração, em função das depredações, mas também em função da falta de investimentos municipais, tornando o serviço menos atrativo. E pelo fim de diversas linhas de ônibus, a circulação dos usuários se tornou ainda mais difícil. A gestão atual vem alocando um esforço para recuperação do sistema. A proposta é contar com nova frota até 2023, da qual uma parte dos ônibus será elétrica. Como eu disse anteriormente, a avenida Brasil tem um papel fundamental na mobilidade da população periférica da cidade, e nela passam aproximadamente 25 mil ônibus todos os dias. Um estudo realizado por Rafael Pereira (do Ipea) aponta que o corredor pode beneficiar 58% da população carioca, ampliando o acesso ao trabalho em 23% para populações mais pobres. Assim, o sistema, de forma geral, tem potencial para tornar a mobilidade da população periférica mais eficiente. Mas para isso deve garantir a boa operação dos corredores existentes e iniciar a operação do corredor. As obras do BRT TransBrasil se arrastam desde 2014, e a gestão atual se comprometeu com o início da operação em 2023. 

 

E em relação às tarifas? você já mencionou que elas são elevadas para as pessoas. Subsídios poderiam ser uma solução e talvez chegar à tarifa zero?

Definitivamente o custo do transporte não é adequado para a renda da população, não atende ao princípio de modicidade tarifária. O preço da tarifa muitas vezes exclui parte da população de atividades culturais e de lazer, e muitas vezes até de trabalho.
A tarifa, inclusive, tem promovido um efeito perverso, a mobilidade ativa compulsória, quando pessoa não tem recurso para financiar o deslocamento e realiza as viagens a pé ou por bicicleta. E isso não é uma boa notícia, pois estamos falando de viagens com distâncias muito superiores às aceitáveis para esses modos de transporte.
A mobilidade ativa, assim como a escolha por qualquer modo, deve ser sempre uma opção confortável.

Mas, por outro lado, o custo do transporte para o município também é alto, e isso dificulta em muitos casos a redução do valor da tarifa. Mas existem propostas que buscam o investimento nesse sentido, como a utilização de um percentual da Cide-Combustíveis, proposta pela Frente Nacional de Prefeitos, anos atrás, a redução ou a isenção do ISS, ou a criação de um Sistema Único de Mobilidade. Outras fontes de recurso também podem ser discutidas, como a tarifação de automóveis particulares, por exemplo. Mas medidas dessa natureza precisam ser pensadas com atenção ao contexto local para que tenham caráter redistributivo e não ampliem a exclusão das populações das classes C, D e E.


Qualquer mobilidade começa na calçada. E o Rio, como todas as capitais do país, mostra enormes variações de qualidade nos passeios, na sinalização para pedestres, no conforto para quem quer caminhar. Nós aqui do Mobilize já entregamos dois relatórios sobre caminhabilidade à Prefeitura do Rio, em 2012 e, novamente em 2019. Mas pouca coisa mudou nesses 10 anos. Você acredita que algo possa mudar com a gestão atual, de Eduardo Paes?
A gestão tem se mostrado interessada em melhorar a mobilidade ativa na cidade, incluindo metas relacionadas a isso no plano estratégico e no plano de desenvolvimento sustentável e ação climática. Considerando isso, no caso da mobilidade a pé, eu tenho esperança de que a atual gestão possa implementar ações que melhorem a qualidade das calçadas, a conectividade e a acessibilidade. Esse aspecto é muito importante para visibilizar pessoas que tem suas vidas restritas pela falta de infraestrutura inclusiva.

 

E como está a retomada das ciclovias no Rio? Já é possível ver melhorias concretas nas ruas da cidade? E como você vê a disposição dos cariocas para adotar bicicletas na vida cotidiana?
Como destaquei na resposta anterior, a prefeitura vem buscando melhorar a mobilidade ativa na capital. Além dos planos mencionados, vem finalizandomo plano cicloviário, o que é um avanço considerável para a agenda. Esse processo contou com o suporte do terceiro setor e também com a participação da sociedade civil – em um processo desenvolvido on-line e presencial – em todas as áreas de planejamento. Existe a promessa de implantação de uma importante ciclovia ligando a Tijuca ao Centro da cidade, ainda neste ano. Além dessa, novas rotas na região central, seguindo o plano Ciclo Rotas Centro (desenvolvido por ITDP,  Transporte Ativo e Studio X), no perímetro do Distrito de Baixa Emissão. E novas ciclovias estão surgindo na cidade, começando pelo Centro, onde já estão sendo implementadas.
Em relação aos usuários, na minha percepção, existe sim uma demanda pela bicicleta para diversas atividades. No último ano, realizamos contagens de ciclistas nos acessos ao perímetro do Distrito de Baixa Emissão, em parceria com a Transporte Ativo e o Labmob/UFRJ, e percebemos que uma quantidade considerável de pessoas utilizam a bicicleta mesmo sem a infraestrutura apropriada. Quando pensamos nos subúrbios, que historicamente são grandes usuários da bicicleta, penso sobre a importância desse modo para o acesso às atividades locais e ao transporte público, principalmente ao trem.
Sempre que falo sobre isso recordo da imagem de dezenas de bicicletas presas na grade do mercado próximo a minha casa e perto da estação de trem. Mesmo sem a infraestrutura, a bicicleta se fazia presente na rotina da população.
Mas se pensamos nos riscos associados ao uso das bicicletas em locais sem ciclovias, é compreensível que essa alternativa vá se tornando menos atrativa para quem se sente vulnerável de pedalar junto dos carros. Eu acredito que com um investimento robusto em infraestrutura, associada e conectada ao transporte de média e alta capacidade e ao estímulo para o desenvolvimento de subcentros locais, a bicicleta pode voltar a ser protagonista no subúrbio carioca. Os resultados das contagens que a Transporte Ativo realiza em nossa cidade mostra que existe demanda, existe desejo por pedalar. Nós precisamos é de cada vez mais investimentos.

 

Estação Realengo: bicicletário fechado e bikes amarradas em passarelas. Foto: Brenno Carvalho/O Globo

 

Vamos imaginar que você fosse a prefeita do Rio. Seria possível reduzir o uso do automóvel na cidade? Como e por onde e como você começaria essa mudança?
Acho que esse é o sonho de muitos dos que estudam e trabalham com mobilidade urbana. Para que seja possível reduzir a quantidade de carros nas vias é fundamental que o transporte público coletivo e a mobilidade ativa se tornem mais atraentes. E isso se consegue com serviços de qualidade, com horários confiáveis, oferta de rotas que atendam os desejos da população, custo acessível e seguros. Um espaço viário mais democrático também é algo necessário, já que o espaço é majoritariamente destinado aos veículos particulares. A existência de faixas exclusivas para os ônibus e as ciclovias, por exemplo, são ações que podem tornar esse recurso mais democrático. Políticas de tarifação dos veículos particulares também podem ser consideradas, mas para que isso aconteça é fundamental que a população tenha opções. Mais do que isso: que tenha boas opções. Nossa cidade impõe longas distâncias diariamente para uma parcela substancial da população. A escassez de transporte público para essas pessoas muitas vezes leva à migração para veículos próprios, ainda que isso signifique endividamento. Mais ainda, tarifas podem ser também um fator de exclusão. Nesse sentido, todas essas políticas devem considerar aspectos socioterritoriais em seu desenvolvimento.


Nota: esta entrevista foi concedida em junho de 2022 , por e-mail, para complementar as visões colhidas sobre o Rio de Janeiro para o Estudo Mobilize 2022, trabalho previsto para divulgação no próximo mês de agosto.

 

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