Paulo Saldiva: bicicleta, para curar as cidades doentes

Uma entrevista com o médico, professor da Faculdade de Medicina da USP e ciclista convicto

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Fonte: Mobilize Brasil  |  Autor: Marcos de Sousa - Mobilize Brasil  |  Postado em: 19 de setembro de 2011

Prof. Saldiva

Paulo Saldiva e sua bike no trânsito de São Paulo

créditos: Arquivo pessoal

Médico, professor da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo e ciclista convicto, Paulo Saldiva se tornou conhecido nos últimos anos pela sua posição irredutível contra o modelo de transporte baseado no automóvel. Mais do que isso, Saldiva critica o pouco caso das autoridades em relação à piora da qualidade do ar nos centros urbanos brasileiros, com graves consequências para a saúde dos cidadãos.
Nesta entrevista, o professor defende uma radical mudança na estrutura urbana, para reduzir o espaço ao carro particular e o estímulo ao tranporte público, incluindo sua integração com ciclovias e sistemas de bicicletas públicas.


É possível avaliar quantas pessoas são prejudicadas em São Paulo e no Brasil pela poluição atmosférica urbana?
Se você imaginar o estresse social, as horas gastas no trânsito, a perda de horas de sono, eu diria que todas as pessoas são afetadas. Se você considerar os óbitos, são 4 mil pessoas por ano, apenas em São Paulo. Na Região Metropolitana, são 7 mil, o que é uma catástrofe do ponto de vista da saúde pública.

Isso é mais do que o número de mortes provocadas por diabetes e tabaco. Embora a poluição seja menos importante do que essas doenças, ela afeta 100% das pessoas. E a dose de poluição recebida por quem está no ponto de ônibus é maior do que a recebida por quem esteja em um carro fechado com o ar condicionado ligado no modo de recirculação. Então existe um viés socioeconômico, porque as vítimas da poluição não são apenas os idosos e crianças, mas principalmente os mais pobres.


Na apresentação do especialista Thomas Dockery, em agosto, aqui no auditório da faculdade, ele mostrou que as cidades dos EUA em 20 anos conseguiram reduzir seus índices de poluição por material particulado de 28 para 14 microgramas por metro cúbico...
Que é o índice atual na cidade de Curitiba.


Sim, mas no dia da palestra, na porta da faculdade, havia um medidor da qualidade do ar que apontava algo como 65 microgramas. Aquilo era verdadeiro?
Sim, estava correto. O índice de material particulado em São Paulo tem uma média anual em torno de 28 microgramas por metro cúbico, mas está batendo os 70, 80 microgramas durante os meses de inverno. O problema é que o índice vem piorando. De 1995 a 2005 a situação vinha melhorando pela renovação da frota, pelo controle dos combustíveis, pela evolução tecnológica dos carros, e isso nos levou a acreditar numa melhora contínua, mesmo mantendo o padrão de mobilidade baseado no automóvel. Só que isso acabou.

A falta de fluidez no trânsito faz com que os veículos fiquem mais tempo parados, em marcha lenta, com seus motores ligados. O aumento da frota e o maior tempo que os carros ficam ligados está fazendo com que a gente volte para trás. Então, a solução que a cidade adotou, baseada em máquinas que geram calor modifica inclusive o perfil de clima da cidade. Quando uma frente de chuva chega à cidade, encontra uma zona de baixa pressão no centro e por isso entra com muito mais velocidade. Então chove muito mais no centro do que na periferia. E a garoa, que era a cara da cidade, sumiu. E nós acabamos ocupando as várzeas dos rios com pistas para automóveis e não conseguimos ganhar velocidade.


É possível estimar o custo do tratamento dos problemas de saúde gerados pela poluição?
O custo para o Tesouro, aquilo que é gasto efetivamente em dinheiro, usando a tabela SUS e as de reembolsos dos convênios, varia entre 180 e 200 milhões de dólares por ano. Este é o custo das internações apenas, sem computar as consultas, medicamentos, perdas de horas de trabalho. Se você considerar a redução da expectativa de vida e valorar pelo PIB per capita, que é um custo não monetário, mas é uma perda de produtividade, vamos chegar a 1,5 ou 2 bilhões de dólares por ano. Então, considerando esse custo, o investimento para, por exemplo, melhorar a qualidade do díesel, incluindo refinarias e ajustes na frota, seria pago em cerca de cinco anos. No estado de São Paulo, a Anfavea e a Petrobras pagaram apenas cerca de 13 milhões de reais a título de compensação pelos danos de saúde provocados pela poluição atmosférica. E foi o único estado onde eles pagaram alguma compensação.


Então, existe uma relação entre a mobilidade, o tipo de veículo usado nas cidades e a urbanização, com efeitos graves para a saúde, certo?
No nosso caso, em São Paulo, e em todas as regiões que analisamos - Recife, Belo Horizonte, Rio de Janeiro, São Paulo, Curitiba e Porto Alegre - a fonte veicular é o fator determinante de poluição nas cidades. Fontes industriais tem menor peso, porque as cidades passaram a vender serviços e não mais produzir bens. Tirando o dado da queimada na Amazônia, a poluição veicular aparece com um papel muito importante na produção do efeito estufa. Como as queimadas são muito intensas, elas cumprem ainda um lugar significativo nesse processo. Mas, se pudéssemos mudar essa prática medieval de queimar para tratar a agricultura, então se perceberia que estamos caminhando para o aumento da frota, com incentivo governamental para esse aumento. E sem um "plano B".


E qual seria o plano B?
Vejamos a situação de Londres, cidade que foi radical, fechou o centro e implantou um pedágio urbano. Lá a situação é outra, porque existe uma estação de metrô a cada esquina. A cidade de Santiago do Chile desenvolveu um projeto de recuperação das vias públicas para o ônibus, com veículos de baixa emissão, e isso já levou a uma redução do uso de carros. Então, a melhor propaganda do transporte coletivo é a eficiência e rapidez, e o preço subsidiado, em restrição ao transporte individual.
Em São Paulo, os alunos da faculdade (de Medicina, próxima à av. Paulista), que antes usavam o carro para ir ao campus da USP (no Butantã, zona oeste), passaram a deixar o carro na faculdade e pegar a linha amarela do metrô, porque o trajeto ficou muito mais rápido desse modo. Então, o que mudou não foi algo como a consciência ecológica, mas o fato de que esse modal se tornou mais prático e econômico.

Esse é o plano B. Qualquer medida que seja restritiva ao uso do automóvel pela cobrança, não vai acontecer; para ser efetiva, o transporte coletivo tem de ser eficiente. E para o transporte coletivo ser eficiente, ele tem de ocupar um espaço maior na malha urbana, com vias duplas para ultrapassagem dos ônibus etc.


Na sua opinião, o ônibus do modo como é hoje, com sistema mal organizado, movido a diesel, poluidor, mesmo assim ainda é melhor do que o carro?
Sem dúvida. O ônibus tira 350, 400 carros da rua! Como solução, se tivéssemos um modal com ônibus correndo por calhas expressas, em situações mais favoráveis à mobilidade, reduziríamos a poluição deste meio de transporte. Mesmo porque os ônibus passariam a emitir menos poluentes, com o aumento da velocidade média.

Agora, há alternativas em discussão em São Paulo bem interessantes. Não sei se será mantido, mas há um projeto, no Plano Municipal de Mudança Climática, que prevê a substituição da frota cativa de ônibus, que é controlada pela Prefeitura, por veículos que não queimem combustível fóssil. Pela lei, as concessões devem ser renovadas de dez em dez anos, e os novos contratos acontecerão em 2013 ou 2014. Temos 15 mil ônibus, e já se sabe que a partir de 2018 não será mais permitido por lei o uso de combustível fóssil em São Paulo.


Você quer dizer que não se poderá mais queimar nem óleo, nem gasolina, nem gás, correto?
Gás, só se for de aterro. Haverá então ônibus elétrico, movidos a etanol, a biodiesel, e ônibus híbridos rodando com biodiesel. Com isso, teremos um co-benefício em saúde, porque reduziremos as emissões de gases de efeito estufa, como também reduziremos a poluição nos corredores de ônibus. Mas, é preciso que a legislação beneficie o transporte público com tarifas de eletricidade mais baixas. Não se pode tratar chuveiro elétrico e transporte do mesmo jeito. Mas uma pergunta que se faz ao secretário de Transportes é se esse plano realmente vai durar. Porque, ao mesmo tempo, a Petrobras está descobrindo muito óleo na bacia de Santos. E o governo é sócio da Petrobras...ou seja, haverá forte pressão para o uso desse combustível que estará mais disponível.

Saldiva em sua sala

O professor Paulo Saldiva em sua sala, na FMUSP

créditos: Arquivo pessoal

Existem fabricantes, como a Fiat, a Hunday, que estão produzindo o carro elétrico, que promete ser o veículo individual das próximas décadas. Na sua opinião, isso é um avanço, ou pode significar outro problema daqui a alguns anos?


No Brasil somos capazes de produzir energia elétrica limpa, mas o problema não está só na emissão de poluentes. É preciso saber o que será feito para a reciclagem das baterias e o uso do espaço urbano. Porque a redução da poluição do ar passando de veículos a combustão para elétricos não resolve a mobilidade. O prolbema não muda, porque a cidade continuará cheia de carros. A mensagem passada pelo setor automobilístico é a seguinte: “sim, conseguiremos resolver os problemas ambientais, do aquecimento global etc., mas permaneçam por favor com o mesmo padrão de mobilidade até que nós consigamos desenvolver um carro conceito...”.


Em outras palavras: veículos mais limpos farão parte da estratégia de melhoria da qualidade de vida das cidades, mas não serão a solução, que passa necessariamente por um sistema de transporte coletivo. Em algumas cidades na Califórnia uma lei obriga as empresas a terem estacionamentos próprios, e é proibido parar o carro na rua. Por conta disso, elas demolem os prédios do entorno para criar estacionamentos. Isso cria várias áreas vazias, a cidade vai rarefazendo, sobram desertos urbanos, grandes pátios de concreto onde antes havia lojas, comércio... É como se jogassem uma bomba, acaba com o lugar! Em São Paulo há uma pressão para a construção de prédios garagem, Isso esvazia a cidade, diminue a população das ruas. É o que vem acontecendo no Itaim e em toda a região da avenida Berrini, onde a densidade populacional vem caindo. Deixa-se para trás um deserto, a decrepitude da região. Foi assim em São Paulo, no centro velho, depois na Paulista, a Faria Lima, e prossegue, vai mudando de lugar...


O fenômeno já foi apontado por urbanistas, não é? São Paulo historicamente constroi e abandona, e assim vai indo em direção à Serra do Mar...


Isso mesmo, desde os tempos do índio Tibiriçá. Toda vez que se descobria ouro num lugar, a cidade esvaziava... Sempre foi assim, é um jeito próprio de sentir a cidade. Quando foi construído o primeiro monumento de cunho artístico, o chafariz na Ladeira da Memória (centro), as pessoas se perguntavam para quê aquilo... Porque sempre foi uma cidade sem apego, feita de crescer e demolir.


Mas apesar de ser uma cidade de passagem, nos últimos 40 anos São Paulo se consolidou. Verdade que como mancha urbana desordenada, mas há certa permanência, não?


Sim, mas acontece que a mancha se espalha, com a criação destes desertos internos. Hoje se faz prédios onde não mora ninguém, e as pessoas vão procurar moradia longe. Então, esse tipo de crescimento é outro fator que leva ao caos do transporte. Se calcularmos os quilômetros rodados na cidade multiplicado pelo número de pessoas transportadas, o produto mostra uma São Paulo que está entre as primeiras do mundo em quantidade de gente transportada a distâncias as mais longinquas. Nenhuma cidade que eu saiba transporta tanta gente a tanta distância (passageiro/km). Isso é insustentável.


Agora, um primeiro movimento de volta do trem vai surgindo. Para Jundiaí, Sorocaba, Santos...linhas que existiam até os anos 1970 e foram sucateadas propositalmente. Havia uma lógica, um conceito de modernização que passava pelo carro. Saía de cena o capital inglês, entrava o nacional, com as grandes empreiteiras que só sabiam fazer estrada. É a lógica de Brasília, “a cidade dos Jetsons”!


Você é conhecido por ser um usuário de bicicletas. No mundo todo há exemplos de sistemas públicos de bicicleta, como a Ecobici de Barcelona, Bruxelas, México,Copenhague, Paris, Bogotá... Qual é o desafio das cidades brasileiras para chegar a um modelo que incorpore este veículo leve e saudável, integrando-o ao sistema de transporte como um todo?


Não há desafio técnico, e não falta espaço nas vias para a bicicleta. O problema é cultural. Pena, porque importamos tantas coisas boas da Itália, de Portugal, menos o amor pela bicicleta. Sempre usei bicicleta, e já ouvi coisas estranhas, como de uma secretária que certa vez me aconselhou a não vir para a faculdade de bicicleta, porque isso não ficava bem com a imagem de um professor. Outra vez uma pós-graduanda me deu um Monza, porque achou que eu era pobre. Trabalhando no Incor (Instituto do Coração, da USP) eu podia entrar com qualquer veículo, menos a bicicleta. Justo lá, onde aconselhávamos as pessoas a fazerem exercício...


Então, existe a ideia de que bicicleta é transporte para trabalhador pobre. Ou a visão atual, que a enquadra na categoria de “ecologista fanático”. Outro dia uma rádio criticava a proposta de ciclofaixa, dizendo que era algo perigoso, que provocaria acidentes. Mandei uma mensagem dizendo que, a seguir nessa linha de raciocínio, deveríamos defender que as pessoas não devem sair de casa, já que o trânsito é violento, não há respeito à faixa de pedestre, as calçadas são mal conservadas, altas, provocam quedas (são a maior causa de acidentes nas ruas), e por aí vai... Então, o melhor é ficar trancado em casa, ou só andando de carro, é isso?!


Você acha que falta vontade política, uma decisão firme dos governantes, para melhorar a mobilidade?


Sim, falta decisão para separar um trecho da rua para colocar o ônibus. Nas grandes avenidas é por onde eles tem que passar. Já nas vias secundárias, bastaria destinar um lado da rua, um dos lados usados pelos carros para estacionar, e criar aí a ciclofaixa. Só metade da rua: um lado para estacionamento de carros, outro lado para a ciclofaixa. Falta decisão também para criar estacionamento para bicicletas. Coisa mais fácil do mundo, não precisa de investimento nenhum. Por exemplo, nunca acho onde parar a bicicleta no aeroporto de Congonhas; há espaço reservado para moto, carro e o que for, menos para bicicleta.


Sorocaba, por exemplo é uma cidade a 100 km de São Paulo, montanhosa, com muitas subidas. Pois o prefeito voltou impressionado de uma viagem à Europa e fez um grande programa para a bicicleta. Em dois anos, foram criados espaços para este veículo, e pode-se hoje percorrer a cidade inteirinha pedalando. E veja, não é uma cidade pequena, tem 600 a 700 mil habitantes.


Você usa bicicleta todos os dias...


Todo dia. Desde o tempo em que eu morava em Osasco, desde então eu vou e volto de bicicleta. Hoje, por exemplo, vou para a TV Cultura e depois volto para a faculdade, para dar aula. Como vou andar muito, e tenho de usar terno, nesses dias uso uma bicicleta elétrica. Mas teve uma época que devia ir até a USP todo dia, e era de bicicleta que me locomovia, indo e voltando.


Quais são os benefícios para a população?


Não são só benefícios em termos de não emissão de poluentes, mas também econômicos. Para quem paga R$ 6 por dia de condução, basta guardar algum dinheiro por três meses para comprar uma bicicleta. Essa pessoa, que não tem tempo para se exercitar em academia, terá um benefício para a saúde. Além disso, de bicicleta a cidade passa a ser vista e sentida de um modo diferente, melhor.


O que disse acima, que não é um problema de engenharia, eu repito. Buenos Aires, por exemplo, está implantando seu programa de ciclorrota: deixou as grandes avenidas para os ônibus, e as outras ruas pôs bicicleta, reservando um dos lados onde antes os carros paravam. E note, não são cidades padrão europeu, são localidades que se aproximam de nós em termos de realidade socioeconômica, como Cidade do México, Santiago etc. Enquanto isso, é triste ver que por aqui a bicicleta aparece mais é nos anúncios de lançamento de empreendimento imobiliário, que costumam usar a imagem da família inteira passeando de bicicleta. É uma coisa idílica, de lazer, nada a ver com a realidade.


Enquanto isso, em São Paulo, as pessoas tiraram seus jardins e cimentaram tudo para estacionar carro..


E levantaram ou abaixaram suas calçadas para o carro entrar e sair sem dar tranco, mas que faz as pessoas, os pedestres, tropeçarem. A queda é a maior causa de procura aqui do Instituto de Ortopedia do Hospital das Clínicas. Para mudar essa cultura precisa “pegar pesado”. Você sentiu como a multa agora para quem ultrapassa a faixa de pedestre mudou o comportamento das pessoas? A gente percebe que os motoristas estão mais atentos. Então, se num primeiro momento a autoridade pública é vista com antipatia, logo depois as pessos compreendem os benefícios para a qualidade de vida urbana.
A cidade está ficando tão insuportável, que ela está doente. E as pessoas quando estão doentes, elas mudam. É o lado bom. Então, acho que desse caos, talvez surja a energia que falta para repensar a cidade. Porque do ponto de vista técnico, nós temos tudo: combustíveis limpos, experiências bem sucedidas de cidades com culturas parecidas, que podem ser adaptadas, e tem um laboratório de boas políticas, que podemos escolher a que melhor funciona. Nem precisa ter criatividade.


O que o Rodoanel faz, ele funciona para reduzir os focos fortes de poluição, a Bandeirantes por exemplo; mas na Região metropolitana a massa emitida é a mesma - tira-se de um ponto e coloca-se em outro...a média da cidade não muda, apenas se reduz pontos mais concentrados. Não resolve. É o mesmo que aconteceu quando passaram o cano de escapamento de baixo e instalaram em cima: a poluição é a mesma.

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