Reflexões sobre qualidade de vida numa viagem no BRT

A jornalista Amelia Gonzalez fala sobre a sua experiência no BRT carioca

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Fonte: G1  |  Autor: Amelia Gonzalez  |  Postado em: 05 de maio de 2016

Estação de BRT no Rio

Estação de BRT no Rio

créditos: Amelia Gonzalez

 

Uma bruma leve de poluição cobria a paisagem e fazia um certo frio. Nas pistas, poucos carros àquela hora. No entorno, prédios imensos, com luzes acesas, pessoas fechando seu dia, formavam um contraste com a rua, quase deserta. Eram 23h40 da noite de terça (3) e eu estava diante da estação Recreio dos Bandeirantes do BRT (Bus Rapid Transit).

 

Acabara ali a primeira viagem que fiz utilizando esse meio de transporte carioca inaugurado em 2012, cuja sigla significa: Transporte Rápido por Ônibus. Ela começara em Botafogo, pouco antes das 22h. Bem, para ser mais precisa, a minha viagem particular começara bem antes, no dia 17 de abril, quando nos reunimos para assistir à patética cena protagonizada por nossos congressistas da Câmara e refletirmos sobre novos rumos para o país. Alguém puxou o debate sobre mobilidade urbana, um dos muitos entraves para uma boa qualidade de vida, e contou sua peripécia quase diária para ir do trabalho, um consultório em Botafogo, para casa, no Recreio dos Bandeirantes, de BRT. Convidei-me para ir junto um dia qualquer, fui ontem.

 

Pegamos o veículo de integração, no Humaitá, depois de uns vinte minutos de espera. Apesar da hora, estava bem cheio, consegui um lugar por sorte, mas meu amigo viajou em pé o tempo todo. Ônibus velho, desses em que o motorista exerce a função também de trocador, sem ganhar um tostão a mais por isso. Ao meu lado, uma jovem não tirava os olhos do celular, aliás, hábito comum ali.

 

No turbilhão político pela disputa de poder que vivemos, seria natural que os olhares estivessem ligados em notícias sobre os novos rumos do país... Mas, não. Monique (fiquei sabendo depois seu nome) tentava passar o longo tempo de viagem fazendo um jogo de paciência, ou qualquer coisa semelhante. Por um momento, porém, mostrou-nos que estava também antenada em nossa conversa e respondeu rápido quando eu me perguntei se o ônibus seguiria assim, lotado, até o ponto final, no Terminal Alvorada.

 

“Não! Na Rocinha ele esvazia bastante”, disse. E logo depois, com um simpático sorriso, explicou: “Estou aqui ligada no jogo, mas estava ouvindo a conversa de vocês”.

 

Aproveitei para saber mais sobre sua rotina de viagem naquele ônibus, e Monique logo se livrou do celular. Simpática e falante, a jovem de 25 anos contou-me um pouco de sua história de vida. Não pude deixar de me lembrar do livro “Batalhadores Brasileiros”, de Jessé Souza, sociólogo que por ora está à frente do Ipea. Com a ajuda de alunos da Universidade Federal de Minas Gerais, que editou o livro, Jessé traçou o perfil de pessoas que foram ajudadas pelo governo Lula a pular degraus na vida mas que, para isso, precisam trabalhar como, possivelmente, poucos da classe dominante jamais tiveram que fazer.

 

Apesar de tão jovem, Monique tem uma filha de 4 anos, é dona de casa. Acorda diariamente às 6h para levar a filha à escolinha do bairro onde mora, em Campo Grande, e sua manhã é tomada com trabalhos necessários para manter a casa em ordem. O marido trabalha o dia todo como operário da construção civil. Ao meio-dia ela está de volta à escola. Dá almoço para a filha, a deixa com a mãe e, às 14h30m, sai de casa para estudar Administração de Empresas em Botafogo.Suas aulas começam às 18h e ela não pode contar em gastar menos de três horas no trajeto que começa com o ônibus até o Alvorada, de lá outro até Botafogo.

 

O BRT melhorou a vida de Monique, e isso ela conta num sorriso conformado, olhando em volta para o ônibus lotado. Antes, tinha que fazer mais viagens e gastar muito mais tempo. O Metrô poderia ajudar a encurtar a viagem, se não fosse tão caro. Com o Bilhete Único, Monique gasta R$ 3,80 para fazer todo o trajeto. Já fez as contas: de Metrô gastaria quase R$ 15 por dia, impossível para seu orçamento apertado.

 

Assim mesmo, com a melhora do BRT, Monique se ressente de ter uma qualidade de vida melhor. Conta que trabalhava como recepcionista na parte da manhã e decidiu largar porque não compensava.

 

“Eu não via minha filha. E, de repente, comecei a perceber que aquele pouco que eu ganhava não compensava o sacrifício de não acompanhar o desenvolvimento da menina. Hoje eu tenho poucas horas com ela, mas é um pouco melhor. Vou chegar em casa agora e fazer trabalho da faculdade para poder ficar com ela duas horinhas depois do almoço. Hoje só durmo por volta das três da manhã. Sim, vivo com muito sono e cansada, mas é o jeito”, diz a moça, que acredita que o diploma vai lhe dar um emprego melhor no futuro.

 

Mas seguimos conversando e descubro que o que mais Monique queria, mesmo, era morar numa cidade menor. Cita Uberlândia, que fica no Triângulo Mineiro e tem pouco mais de 600 mil habitantes. Não chega a ser, exatamente, uma cidade pequena, mas Monique conta que sempre que vai lá, visitar a família do marido, sente-se renovada. Gosta do ar, da tranquilidade, sonha que sua filha teria espaço de sobra se morasse ali. Mas o parceiro se nega a voltar de onde saiu. Insiste em ficar no Rio, quer juntar dinheiro. Embora já tenham uma casa, seu sonho é melhorar de vida.

 

Passamos por uma das muitas obras que estão sendo realizadas na Barra da Tijuca, comento que, de fato, para operários, o Rio de Janeiro hoje oferece um bom mercado de trabalho.

 

“E eles não ganham mal não, viu? São especializados. A empresa onde meu marido trabalha fornece operários para essas obras todas. Quando acaba uma, eles vão para outra. Mas, também, não têm boa vida. É uma ralação danada o tempo todo, com chuva ou sol”, conta.

 

O Terminal Alvorada já aparecia na paisagem quando me dei conta de que nem tinha reparado no tempo de viagem. Nos despedimos em meio à confusão daquela imensidão, ainda tão vivo e pulsante àquela hora da noite. Segui meu amigo para o BRT Expresso que nos levaria ao Recreio e percebo uma fila enorme na porta do ônibus. Ele me puxou e, quando mal reparei, já estava dentro do primeiro que partiria.

 

A fila é de pessoas que querem ir sentadas, e demora cerca de 40 minutos, fiquei sabendo. Fomos em pé, dessa vez fiquei bem espremida. Percebi que a maioria dos passageiros é formada por jovens como Monique, quase todos com um celular à mão. Ouvindo música, jogando paciência.

 

O BRT é meio lento, mas contínuo. Se fosse o Parador, não seria assim tão ágil, porque ele vai pingando gente em todas as estações, e são muitas. Os números do BRT dão conta da imensidão dessa cidade: no total, são mais de 430 mil pessoas por dia transportadas nos 320 carros para as 102 estações.

 

E assim chegamos ao Recreio. Saio do burburinho de vozes para uma estação quieta e uma rua ainda menos movimentada. Olho em volta, enquanto esperamos uma carona chegar, e fico pensando se o sonho do marido de Monique será, um dia, habitar um daqueles apartamentos de classe média alta do bairro nobre da Zona Oeste que vem crescendo a uma proporção assustadora. No início desta década, um estudo do IBGE dava conta de que em dez anos aqueles bairrostinham ficado 150% maiores sob todos os aspectos.

 

De acordo com o economista francês Jean Fourastié , morto em 1990, que cunhou a expressão “Gloriosos 30 Anos” para descrever o período de prosperidade que a França experimentou a partir da Segunda Guerra, um bom “padrão de vida” se mede pela quantidade de bens e de serviços que se pode obter pela renda média nacional. Mas há estudiosos que hoje já conseguem pôr este padrão em xeque. Diversas outras maneiras de“Bem Viver”  são listadas, que incluem mais tempo para si e para cuidar dos dependentes; cidades menores e mais humanas; uma convivência mais harmoniosa com o ambiente em volta; uma economia mais solidária, menos gananciosa e aglutinadora de capital.

 

Infelizmente, porém, como lembra outro economista francês, Serge Latouche, professor da Universidade de Paris, no artigo “Standard of Living” (“Padrão de vida”, em tradução literal), que escreveu para o livro “The Development Dictionary”, “a fascinação com um aumento do padrão de vida é frequentemente maior entre as populações dos países mais pobres do que nas dos países mais ricos”.

 

Acredita ele que é porque os mais ricos já se conscientizaram de que o mundo precisa prezar mais alguns valores tradicionais que muitos dos mais pobres ainda estão lutando para conseguir preservar. É, pode ser, não sei. Há muito mais coisas nesse caldeirão.

 

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