O mito da "infraestrutura para pedestres"

Passarelas, passagens e até faixas de pedestres são feitas para os carros, não para as pessoas, escreve Joe Cortright, do blog City Observatory, com exemplos lá dos EUA

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Fonte: Strong Towns  |  Autor: Joe Cortright/City Observatory*  |  Postado em: 23 de setembro de 2020

Passarela de pedestres

Passarela de pedestres "italiana": caminho tortuoso

créditos: DRMP Engineering


Uma das maiores mentiras no planejamento de transporte é chamar algo de "multimodal". Quando alguém diz a você que um projeto é "multimodal", você pode apostar com segurança que é realmente para carros e caminhões, com alguns enfeites decorativos para bicicletas e pedestres.

Uma via arterial de quatro ou seis faixas, sinalizada para a velocidade de 80 km/h e com passarelas a cada 500 metros ou um quilômetro, não é adequada para pedestres, não importa a largura das calçadas de cada lado. Isso se houver calçadas...


Muito do que é rotulado de "infraestrutura para pedestres" é, na verdade, "infraestrutura para carros". Em um local povoado inteiramente por pedestres e bicicletas, por exemplo, não há necessidade de amplas faixas de servidão, separações de nível ou semáforos. Mesmo nas cidades mais populosas, as pessoas simplesmente caminham, sem a necessidade de qualquer sinalização de solo. Os humanos há muito tempo têm a capacidade de evitar colisões, usando pistas visuais sutis. Lugares adequados para pedestres não precisam de infraestrutura elaborada.


Muito do que pretende ser uma infraestrutura "para pedestres" é, na verdade, uma infraestrutura automotiva, e só é necessária em um mundo dominado pelas viagens de carro, em lugares que são projetados para privilegiar os carros. É revelador que o "nível de serviço" fornecido aos pedestres (nominalmente para sua segurança) nunca seria tolerado em qualquer projeto de rodovia recém-construído ou "melhorado": as rampas para alcançar os viadutos dobram, triplicam ou quadruplicam a distância que um pedestre deve percorrer atravessar uma estrada e exigir que subam e descam um nível substancial.


Nenhum engenheiro de rodovias construiria um desvio que dobrasse ou triplicasse o tempo de viagem dos carros, mas eles fazem isso regularmente para pessoas a pé.


Quando construímos uma calçada ao longo de uma via arterial movimentada, ou colocamos um sinal de trânsito ou construímos uma passarela de pedestres, podemos chamá-la de infraestrutura "pedestre", mas a única razão pela qual é realmente necessária é por causa da presença e primazia dos carros. E sua finalidade é principalmente beneficiar os carros, acelerando sua viagem, libertando-os da necessidade de prestar atenção ou ceder aos pedestres (ou ter que fazê-lo apenas em condições estritamente limitadas). Se um pedestre cruzar fora de uma calçada, ou contra um semáforo, a lei rotineiramente isenta os motoristas de veículos de quaisquer penalidades de bater ou matar.

 

A infraestrutura “para pedestres” mais elaborada é, na verdade, infraestrutura de automóveis. Como exemplo, vamos dar uma olhada em Lake Mary, Flórida, um subúrbio de Orlando. Como grande parte dos subúrbios da Flórida, o Lago Mary é uma rede de vias arteriais com várias faixas. Um dos locais de acidente mais altos da cidade, de acordo com seu plano de transporte, é a interseção das vias Lake Mary Boulevard e Country Club Road. O Lake Mary Boulevard tem sete faixas de largura e é um obstáculo assustador para os pedestres. Daí, a cidade construiu duas passarelas para pedestres.

 

Passarela em "estilo mediterrâneo/italiano": Foto: Reprodução Google Streetview

 

A empresa de engenharia que construiu o cruzamento o descreve como "tendo um estilo mediterrâneo/italiano" e apregoa seu "gabinete de segurança altamente decorativo e paredes de revestimento decorativo". Qualquer pessoa que já caminhou por cinco minutos em uma cidade italiana terá dificuldade em encontrar qualquer semelhança substantiva. As rampas de acesso para alcançar a estrutura elevada têm quase o triplo da largura da via, o que provavelmente explica porque as pessoas ainda preferem usar a faixa de pedestres.


Essas passagens de pedestres elaboradas e caras são, na melhor das hipóteses, um esforço corretivo para minimizar o perigo que esse ambiente representa para quem não está em um carro. Eles realmente não tornam a área mais agradável para caminhadas. O verdadeiro problema não é a infraestrutura, ou a falta dela, mas um ambiente construído que é inóspito para pedestres e ciclistas.


Aqui está outro exemplo:

Travessia multiplicada por quatro: um bom exercício Foto: Port Wentworth, GA (ICE) 


 

Em Port Wentworth, um subúrbio de Savannah, Geórgia, o Departamento de Transporte construiu uma passarela de pedestres de 4 milhões de dólares em uma rodovia de quatro pistas, a Augusta Road. O objetivo era conectar uma área residencial  em um lado da via com uma escola local, do outro lado. O viaduto apresenta longos ziguezagues, o que mais do que quadruplica a distância que se tem que caminhar para atravessar a estrada.


Faixas de pedestres elevadas (lombofaixas) tornam o espaço mais confortável para os pedestres e ligeiramente mais lento para os carros. Mas talvez o mais importante, as faixas de pedestres elevadas redefinem a “propriedade” do espaço. Elas sinalizam para motoristas e pedestres que os caminhantes têm prioridade: que os carros estão passando por uma calçada, em vez de "os pedestres estão atravessando a pista".

No entanto, ironicamente, as faixas de pedestres elevadas são realmente necessárias apenas por causa dos carros, portanto, são na verdade infraestrutura para carros, não para pedestres.



Calçada elevada em Sydney, Tampa (EUA) Foto: David Levinson


“Infraestrutura de pedestres” é um oxímoro. Um lugar hospitaleiro para as pessoas que andam, não precisa de "infraestrutura" separada. Elas podem simplesmente usar as ruas como um lugar para caminhar, assim como os humanos fizeram nos vários milhares de anos em que havia cidades, mas não carros.

*Tradução e adaptação: Marcos de Sousa/Mobilize Brasil

 

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