Mobilidade como Serviço tem chances no Brasil?

Você compra um pacote de serviços de transporte e usa em seu dia a dia. Será que funcionará em São Paulo, Rio, Salvador ou Manaus? Luísa Peixoto, da MaaS Global, explica

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Fonte: Mobilize Brasil  |  Autor: Marcos de Sousa/Mobilize Brasil  |  Postado em: 10 de agosto de 2022

MaaS, uma conexão entre modos de transporte urbano

MaaS, uma conexão entre modos de transporte urbano

créditos: Jade Oliveira / I Concurso Mobilize de Ilustrações


A gerente de Políticas Públicas da Maas Global, Luisa Peixoto, explica o que é a mobilidade como serviço (mobility as a service) e aponta as vantagens potenciais que esse modelo pode trazer ao transporte urbano nas cidades brasileiras, especialmente com a redução no uso de carros particulares. Para isso, o poder público e as operadoras de transporte precisam concordar em compartilhar informações de forma aberta e transparente. Será? Luisa responde...




Luísa Peixoto, especialista em mobilidade urbana.
Foto: Maas Global


Você pode explicar o conceito de mobilidade como serviço? 

MaaS, é importante citar, não é um aplicativo. É uma política pública que procura integrar os serviços públicos e privados de transportes em um único 'ecossistema', através de uma plataforma digital que reúne informações e formas de pagamento para viabilizar essa integração.


E q
uem é o cliente?
Nosso cliente é a pessoa que precisa circular nas cidades usando várias formas de transporte. Ela nos paga pelo uso dos serviços e nós remuneramos os operadores ou o poder público, que são os nossos fornecedores de serviços. Para que essa ação permita, de fato, que as pessoas possam usar os vários modos de transportes nessa única plataforma é preciso que ela seja adotada e direcionada como uma política pública pelos governantes para reduzir o uso do carro particular nas cidades. Nosso objetivo é gerar um impacto positivo na vida das pessoas, nas cidades e para isso o conceito precisa ser compreendido e dirigido pelas autoridades para reduzir o uso excessivo dos automóveis, das emissões de gases poluentes e também a redução das iniquidades sociais para o acesso à cidade.


Vamos tomar o Rio de Janeiro como exemplo. Lá existem sistemas de ônibus, trem, metrô, bonde, barcas, teleféricos, bicicletas, carros de aplicativos, táxis e também os carros particulares, vans mais ou menos irregulares. Em uma cidade assim complexa isso é possível?
Eu acho que é justamente nas cidades mais complexas que nós precisamos dessas soluções digitais. Muita gente comenta a nossa proposta, compara com a Europa e considera que no Brasil vai ser impossível aplicar o conceito de mobilidade como serviço pela carência, pela falta de infraestrutura de transportes. Mas eu acho que os recursos digitais fazem mais sentido nessas cidades complexas porque permitem que as pessoas resolvam os problemas de mobilidade de forma a potencializar a infraestrutura existente.

Com a tecnologia, com padrões adequados de informação, nós não precisamos mais de tantos terminais para conseguir realizar as conexões entre os modos de transporte. Claro que para isso será necessário que os operadores e autoridades tenham uma atuação mais colaborativa, trabalhando com padrões de dados que permitam o intercâmbio das informações. Então, mais importante do que a infraestrutura, é essa padronização de dados, permitindo que surjam vários produtos a partir da integração dos dados.


Essa circulação de dados também facilitaria o planejamento dos transportes?
Quanto mais produtos forem criados, quanto mais essa integração for concretizada, mais nós saberemos sobre o comportamento e as necessidades de mobilidade das pessoas, de cada perfil de usuário. Hoje, lá na Finlândia, existem aqueles “pacotes” adequados para os usuários europeus e nós precisamos entender quem é o usuário e que tipos de serviços serão melhor aceitos pelos brasileiros. Podem ser pacotes com pagamentos mensais, que combinem vários serviços, ou que ofereçam descontos. Com o compartilhamento de informações vai ser possível criar uma infinidade de produtos, cada um deles para um tipo de usuário.

 

Teleférico do Alemão, no Rio de Janeiro, em 2015: agora em recuperação Foto: Prefeitura do Rio 

 

Mas, como convencer as empresas a compartilhar informações?
Os operadores precisam entender que não se trata de uma competição entre ônibus, táxis, bicicletas ou carros de aplicativos. Na verdade, se trata de convencer as pessoas a deixarem o carro para usar um sistema integrado de mobilidade. Precisamos pensar nas pessoas, que buscam acessar as oportunidades, os serviços oferecidos pelas cidades, e como permitir que essa circulação seja a mais fácil possível.


Vamos falar das tarifas. Hoje os sistemas de transportes públicos vivem uma crise. Os empresários reclamam que as operações de ônibus não são rentáveis, não se pagam. E, por outro lado, os passageiros veem as tarifas como muito altas, com a qualidade cada vez mais baixa do transporte oferecido. O conceito de mobilidade como serviço pode responder melhor a esse desafio?
O transporte coletivo tem que ser entendido como um investimento da sociedade para melhorar a qualidade de vida para todo mundo que vive nas cidades. Mas não é possível jogar todo o peso de sustentação desse sistema no bolso de quem usa o transporte público. Porque aí caímos naquele ciclo vicioso: cai a demanda, que gera uma piora na oferta de ônibus e na qualidade dos serviços, o que acaba levando à fuga dos passageiros para outros modos, como os carros por aplicativo, reduzindo ainda mais a demanda, e assim por diante…


A realidade é que nós precisamos de um financiamento público para o transporte, precisamos ter uma política nacional que apoie os municípios na manutenção de seus sistemas de transporte, sejam por ônibus, por trens, barcas ou bicicletas. Isso é básico e exige a presença do poder público.


O segundo ponto é a forma como os contratos de concessão são amarrados. O modelo de bilhetagem, por exemplo, da forma como é feito, sob controle das empresas, precisa ser alterado para um modelo no qual os governos assumam também a gestão financeira do sistema e depois paguem às operadoras.

O poder público precisa gerenciar o sistema como um todo, para entender quanto seria necessário de financiamento, quanto poderia ser pago por um financiamento externo. Se ele vai operar diretamente, se vai conceder, isso deve ser uma decisão de cada cidade porque não há ainda uma resposta clara sobre esse ponto.

Nós estamos vendo um movimento de duas cidades, São Paulo e Curitiba, onde a gestão da bilhetagem é separada do operador de transporte e são elas, justamente, que estão fazendo o credenciamento de empresas para cuidar da bilhetagem, ou seja a abertura para que várias empresas possam atuar, competir e oferecer condições mais vantajosas para o usuário e também favorecer à digitalização do sistema. Então, parece evidente que há alguma coisa de bom em separar a operação da bilhetagem.

 

Ônibus em S.Paulo: como integrar trens, bikes, carros de app e metrô com tantos operadores? Foto: Mobilize Brasil


Os operadores estão preparados para essa mudança?
O operador precisa entender que nesse mundo da informação integrada, o seu principal objetivo deve ser o de vender o maior número de viagens, atrair mais clientes e ser remunerado por isso, e não necessariamente operar um aplicativo. Vou citar aqui o Tomás Martins, da Tembici. Ele costuma dizer que o aplicativo para ele é desvio de foco, porque o principal objetivo da empresa é vender viagens por bicicleta. Então se ele tiver uma plataforma que cuide do pagamento ele não vai mais precisar ter essa relação de venda cliente a cliente, mas como uma empresa que faz a operação e integração das informações. E ele poderá focar simplesmente na operação das bicicletas. Então, pensando na cidade, nós teríamos operadores sendo pagos pelos serviços, empresas terceiras cuidando da relação comercial com os clientes e o poder público gerenciando esse conjunto. Para isso, é necessário que todos trabalhem com os mesmos padrões de dados, permitindo a interação dessas informações, de forma aberta, mais segura, mais eficiente e também mais transparente.


E o problema das tarifas altas?

No início, pelo menos neste momento, é preciso que o sistema de transportes tenha um financiamento externo. É um investimento público para melhorar a qualidade de vida. E depois, se trabalharmos com os dados abertos, com todos colaborando, o sistema ficará mais confiável para todos.


Tarifa zero cabe em sistema de mobilidade como serviço?
Essa é uma discussão muito importante. Sim, é possível incluir a gratuidade em um cartão, de forma que a pessoa possa percorrer trechos sem tarifa, depois pagar pelo uso de uma bicicleta, ou um carro de aplicativo etc. Mas, mesmo se você tiver tarifa zero e o melhor sistema de transportes do mundo, ainda assim, vai ser difícil concorrer com o carro particular, porque sempre a pessoa precisará sair de sua casa a pé e ir até um ponto, ou uma estação, para acessar o sistema. Carro compartilhado sozinho, bicicleta pública sozinha não conseguem atender a todas as demandas de uma pessoa em uma cidade, como o transporte de compras pesadas, por exemplo. Então, o sistema de mobilidade precisa ser muito eficiente e competitivo para que as pessoas queiram deixar os carros em casa.  


Que cidades poderiam ser vistas como bons exemplos de mobilidade como serviço?
Várias cidades da Europa  estão criando suas plataformas de  dados. Em termos de regulação, a Finlândia é um bom exemplo porque lá existe um sistema nacional, coordenado pelo Ministério dos Transportes. A França e a Suíça também fizeram isso em nível nacional. Outros exemplos são Antuérpia, na Bélgica, e Viena, na Áustria, onde o sistema funciona muito bem, e Helsinque, na Finlândia, que tem uma boa integração.


Mas ainda é difícil falar de uma cidade modelo. Para isso, seria preciso que além do poder público todas as empresas de transportes fossem integradas ao sistema, o que não acontece. O sistema avança melhor naquelas cidades onde o poder público estimula a iniciativa. E existe uma discussão na Europa se o sistema deve ser privado ou público. Nós achamos que deve haver uma diversidade de empresas, que a competição pode levar a uma eficiência maior.


Informação em nossos dias é ouro. Como se faz essa negociação para que as várias empresas aceitem intercambiar todas ou parte de suas informações? Como isso foi feito na Finlândia, por exemplo?
Sim, essa ideia de compartilhamento de dados entre as empresas é muito delicada, inclusive porque temos que respeitar a privacidade dos usuários. A vantagem de ter uma plataforma agregadora é que as empresas e o poder público colocam seus dados no sistema e essas informações irão permitir entender melhor as dinâmicas da mobilidade, o que pode ser estratégico para o planejamento do transporte pelos governantes.


É claro que as empresas privadas irão resistir mais a compartilhar dados por questões concorrenciais, de mercado. Mas, independente de se ter uma ou outra empresa que não queira participar, nosso compromisso é dar opções de transporte mais eficientes ao usuário final e também de partilhar os indicadores obtidos com o poder público para qualificar o serviço oferecido ao cidadão. O importante é que todo mundo fale a mesma língua. As palavras chave são padronização e interoperabilidade da informação. O conceito da MaaS Global é trabalhar em conjunto com o poder público para conseguir melhorar a mobilidade.

 


Olho no celular, passageira aguarda trem na Estação da Luz, em S. Paulo. Foto: Mobilize Brasil



Como foi o processo de aproximação da Quicko com a Maas Global?
Era uma empresa que nós admirávamos, como uma inspiração para o trabalho no Brasil até que surgiu a possibilidade de aproximação e fusão das duas iniciativas, o que me colocou a oportunidade de ser Relações Públicas da Maas Global. É um grande desafio de olhar a aplicação de políticas públicas em países europeus e também de trazer esse conhecimento, essa experiência que eles têm lá para a realidade aqui do Brasil, da América Latina.


A Quicko tinha um DNA brasileiro. Agora, com essa fusão, com esse olhar europeu, muda muita coisa na atuação da empresa no Brasil?
Muda, mas muda para melhor, porque até então nós estávamos sozinhos no país. A Quicko já tinha quase quatro anos de experiência, mas lá na Europa eles já têm oito anos de trabalho, em várias cidades, com diversas modelagens de serviços. Então, essa bagagem vai nos ajudar a avançar mais rapidamente no Brasil. A MaaS é a única que consegue oferecer esses pacotes que integram várias formas de mobilidade. A ideia é adaptar essa expertise aqui, no menor tempo possível, em princípio até o final de 2022. Mas, veja, nós também estamos aportando conhecimento para eles. Durante a pandemia, a Quicko priorizou o trabalho de olhar as rotas prioritárias que as pessoas fazem nas cidades e agora lá na Finlândia eles estão absorvendo a técnica de roteirização que nós desenvolvemos, e que é muito robusta. Hoje nós trabalhamos com um time único, intercambiando conhecimento e também ajudando as cidades nesse intercâmbio de experiências. Eu acho que isso vai ser muito relevante.


Quais cidades serão atendidas pelo serviço da Maas Global no Brasil?
Neste ano, a ideia é priorizar as cidades onde nós já estávamos: Rio de Janeiro, São Paulo e Salvador. Estamos abertos a conversar com outras cidades, estamos sempre olhando os avanços que acontecem nessa área, porque a primeira condição para implementar o MaaS é encontrar um 'ecossistema’ favorável.

 

 

Quem é Luísa Peixoto
Luisa Peixoto percebeu, ainda no curso de graduação em arquitetura e urbanismo, que gostaria de atuar na área de políticas públicas e planejamento urbano. E decidiu sair do país para um intercâmbio no Politécnico de Turim, na Itália, onde conheceu os problemas contemporâneos da mobilidade urbana. Depois trabalhou no setor público, na Secretaria de Trânsito e Transporte de Juiz de Fora, sua cidade natal, onde atuou para estimular o transporte ativo.
Cursou mestrado em 2016 na University College London e de volta ao país, ingressou no WRI Brasil, onde trabalhou na área de  Desenvolvimento Urbano. Depois de passar pelo setor público e pelo terceiro setor, Luisa escolheu, em 2019, a Quicko para experimentar a vivência no setor privado. Lá ela integrou a equipe que desenvolveu as ferramentas para aplicar o conceito de mobilidade como serviço (MaaS) às cidades brasileiras. E a partir desse esforço inovador, realizado no país, foi possível a associação com a Maas Global, empresa finlandesa, pioneira nesse conceito.

 

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