A disseminação dos serviços de transporte de passageiros por motociclistas de aplicativos é uma tragédia anunciada em um trânsito já marcado pela alta mortalidade em colisões e quedas de motocicletas. A avaliação é do técnico de pesquisa e planejamento do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), Erivelton Guedes, em entrevista à Agência Brasil. Doutor em engenharia de transporte, Guedes foi um dos responsáveis pela inclusão das mortes no trânsito no Atlas da Violência 2025.
“Qualquer regulamentação vai acabar incentivando e, talvez, dando a falsa impressão de que, seguindo aquele monte de regras, vai dar certo”, diz. “É uma tragédia anunciada. Eu vejo com muito pessimismo isso evoluir”.
Lançado em 2020, o Uber Moto já transportou cerca de 20 milhões de brasileiros ao menos uma vez, o que significa quase 10% da população. Essas viagens foram realizadas por 800 mil motociclistas. Já o 99Moto foi lançado em janeiro de 2022, com expansão gradual nos meses seguintes. Atualmente, o serviço está presente em mais de 3,3 mil cidades e já realizou 1 bilhão de viagens.
Mais mortes
O Atlas da Violência 2025, produzido pelo Ipea e pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, alerta que, enquanto os homicídios estão em queda, o número de vítimas de colisões, atropelamentos e outros sinistros de trânsito vem crescendo desde 2020.
Foram 31.945 vítimas do trânsito no Brasil em 2019, número que aumentou nos anos seguintes até chegar a 34.881 em 2023. No mesmo período, o número de vítimas de sinistros com motos subiu de 11.182 para 13.477.
O maior peso nessa alta é o número de ocorrências envolvendo motocicletas, que já respondiam por uma em cada três mortes no trânsito brasileiro em 2023, último ano com dados disponíveis no Sistema de Informações de Mortalidade do Ministério da Saúde. Segundo o atlas, “o usuário da motocicleta é, atualmente, a maior vítima dos sinistros de trânsito no Brasil”. Guedes acredita que, no ano que vem, quando o atlas incluir os dados de 2024, a disseminação dos serviços de aplicativo contribuirá para um aumento ainda maior nas mortes.
O especialista alerta que na moto o carona é muito mais exposto ao perigo do que o próprio motociclista. “(...) O motociclista, bem ou mal, está enxergando o que está acontecendo, e o passageiro está ali passivamente. Então, para ele, uma ocorrência é algo que surge naquele instante.”
A inadequação da vestimenta de pilotos e passageiros também preocupa: “Idealmente, os dois, condutor e passageiro da moto, deveriam estar com roupas adequadas: botas, calças de couro, jaqueta de couro e capacete. Na prática, a gente não vê isso nos condutores e muito menos no passageiro, que, muitas vezes, está de sandália, roupa curta e com o celular na mão em vez de estar segurando no piloto”.
Apesar dos problemas, Guedes avalia que dificilmente esses serviços serão suspensos: “A gente até acha que é uma luta perdida, e que a moto por aplicativo vai vencer, porque existe uma pressão econômica, uma pressão de vários lados, incluindo o do próprio condutor. Ou ele se acha um empreendedor ou ele precisa almoçar e não tem outra alternativa. Então, ele escolhe arriscar a vida e almoçar. Temos também que entender o lado dele, e o poder público precisa oferecer alternativas. Enquanto não houver alternativa de emprego mais saudável, essa pressão pela moto por aplicativo vai continuar ganhando.”
Letalidade 17x maior
O presidente da Associação Brasileira de Medicina do Tráfego (Abramet), Antonio Meira Júnior, acredita que é preciso fazer um estudo do impacto social e na saúde coletiva que esses serviços trazem. “A vulnerabilidade dos motociclistas é de tal nível que a sua letalidade, ou seja, a probabilidade de morte em acidente, chega a ser 17 vezes maior do que comparado com ocupantes de um automóvel”, afirmou.
O representante da Abramet detalha que motociclistas e caronas não têm qualquer proteção em caso de impacto, que é diretamente absorvido por seus corpos. As motos circulam entre veículos de maior massa e resistência, frequentemente em velocidade diferente, no meio das faixas, o que também dificulta que sejam vistas. Acrescente-se as imperfeições no asfalto, pedras, areia, óleo e outros elementos que seriam pequenos problemas para um automóvel mas podem provocar incidentes graves com motos.
O resultado de toda essa desproteção são lesões severas e politraumas, que, quando não matam, facilmente causam internação por tempo prolongado e provocam deficiências ou sequelas permanentes, alerta Meira Júnior.
Falta de opção
Para o professor do Programa de Engenharia de Transportes do Instituto Alberto Luiz Coimbra de Pós-Graduação e Pesquisa de Engenharia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (Coppe/UFRJ), Glaydston Ribeiro, o crescimento do uso de motocicletas está profundamente ligado ao modo como as cidades brasileiras foram estruturadas, priorizando o transporte individual motorizado e negligenciando o transporte público de qualidade, especialmente nas periferias.
Apesar disso, ele considera que a proibição do serviço tenderia a penalizar os mais pobres, que recorrem à moto por necessidade, e não por escolha. "É necessário pensar em alternativas que ampliem as opções de mobilidade e não somente punir quem já está em situação vulnerável.
Para ler a reportagem completa, com o posicionamento da Uber Moto e da 99Moto, clique aqui.
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