Vinte mil habitantes: o limite do direito à cidade?

Pesquisadora defende planejamento de mobilidade e acessibilidade também para cidades com menos de 20 mil habitantes. Tema foi abordado em trabalho de doutorado

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Fonte: Mobilize Brasil  |  Autor: Nádia Cristina dos Santos Sudário*  |  Postado em: 24 de outubro de 2017

Indianópolis (MG): sete mil habitantes sem direito

Indianópolis (MG): sete mil habitantes sem direito à cidade?

créditos: Reprodução de página da tese de doutorado

A restrição populacional para a participação das cidades nas políticas urbanas pressupõe também a restrição ao direito à cidade para os cidadãos que vivem nos municípios com menos de vinte mil habitantes, já que os mesmos sempre estiveram à margem dos instrumentos de gestão urbana.

No Brasil, a Constituição Federal de 1988, estabeleceu parâmetros para o poder municipal gerir seu espaço urbano, de modo a garantir o bem-estar de seus habitantes e o desenvolvimento das funções sociais da cidade, através dos artigos 182 e 183. Estabelecia-se, no entanto, a obrigatoriedade de elaboração de um Plano Diretor para cidades com mais de 20.000 habitantes, aprovado pela Câmara de Vereadores, devendo esse ser o instrumento básico da política de desenvolvimento e de expansão urbana.

Treze anos após, a Lei nº 10.257 de 10 de julho de 2001, denominada Estatuto das Cidades, regulamentou os artigos 182 e 183 da Constituição Federal, estabelecendo diretrizes gerais da política urbana, dando outras providências, porém reforçando a obrigatoriedade de elaboração dos planos diretores para cidades com mais de 20.000 habitantes. Em 2012, surge a Política Nacional de Mobilidade Urbana regulamentada pela Lei nº 12.587, que também estabelece a obrigatoriedade de elaboração de planos de mobilidade urbana para cidades com mais de 20.000 habitantes. Em contrapartida, em 2015, a Lei nº 13.146 de 06 de julho, institui o Estatuto da Inclusão que veio reconfigurar todo o arsenal de leis e observações técnicas relacionadas às questões urbanas e de acessibilidade, reforçando e reafirmando o direito, por parte de todas as pessoas, à cidade e ao acesso nos espaços públicos e particulares.

Contudo, dos 5.570 municípios brasileiros, 3.842 ficam à margem destas legislações justamente por não possuírem mais de 20.000 habitantes. Diante destas restrições populacionais, que isolam um grande número de municípios, podemos então questionar que somente os cidadãos que vivem em áreas urbanas com mais de 20.000 habitantes tem direito à cidade? O cidadão dos pequenos municípios não possui os mesmos direitos dos moradores das grandes cidades?

Para iniciarmos a discussão junto às esferas governamentais é fundamental quebrarmos o paradigma e o discurso pronto e acabado, ora da academia, ora da sociedade civil, que os pequenos municípios não dispõem de profissionais técnicos, capacitados para elaborar projetos, que os pequenos municípios não têm recursos financeiros próprios e não sabem gerenciar ou requerer verbas oriundas de emendas parlamentares ou a fundo perdido. Essas e demais afirmações consistem em “verdades” fundamentadas em uma realidade imposta aos pequenos municípios, baseada justamente no grave fato dos mesmos sempre estarem fora das políticas e planos urbanos. É uma situação, consequência da não inclusão destes pequenos municípios. Com certeza, havendo a inclusão destes nas políticas públicas ou ao menos no desenvolvimento de ações direcionadas às pequenas cidades, a configuração do cenário modifica-se.

Gradativamente, modifica-se também o cenário brasileiro, o qual possuiu em suas estatísticas urbanas a pequena cidade como uma maioria predominante. Estas pequenas cidades representam papéis fundamentais na composição da rede urbana, mesmo com suas características peculiares, econômicas, regionais, culturais, históricas, religiosas, físicas e humanas. As pequenas cidades movimentam a dinâmica cotidiana de cidades vizinhas que exercem centralidade, dando vida e fluxo aos sistemas urbanos, mas nem por isso uma cidade é mais ou menos importante que a outra. Pode haver variação nas condições de infraestrutura e fornecimento de serviços, porém as interações sempre ocorrerão em menor ou maior grau ao longo dos anos, pela própria construção e reconstrução das formas e funções das cidades.

Na atual conjuntura não dá mais para negligenciar as demandas das pequenas cidades, que são as mesmas ou maiores que as das grandes cidades. Temos pequenas cidades que não possuem ainda a pavimentação das vias urbanas e outras, se quer, dispõe de estrutura de esgotamento sanitário, canalização de água potável, hospitais, sem deixar de mencionar a ausência de iluminação pública adequada. Entretanto, não se pode deixar de lado os aspectos de mobilidade urbana não sendo premissa básica se o município não tem infraestrutura para determinada área, ser uma justificativa para não ter investimentos em outras áreas. Se não as tem até o presente momento com certeza é fruto da concepção nacional de cidades baseadas na restrição do universo populacional de 20.000 habitantes. As demandas básicas de saúde, educação, moradia e lazer são essenciais, mas o direito ao deslocamento seguro também faz parte do direto à cidade, sendo tão importante como os demais. Deslocamento este que começa dentro de casa e perpassa para a calçada. Mesmo que a pequena cidade não possua grande frota veicular e o índice populacional for baixo, os moradores destas pequenas cidades possuem o mesmo direito dos moradores das médias e grandes cidades sem qualquer distinção.

Talvez o diferencial seja apenas as características locais e a dinâmica urbana, mas o direito de ir e vir de forma segura é igual para todos. O fato de não haver veículos e população significativa não justifica a ausência de calçadas ou de pavimentos destinados ao acesso e deslocamento dos moradores, principalmente aos moradores com mobilidade reduzida que com certeza encontram-se privados em suas residências justamente por não haver acessos adequados.

Mesmo que a cidade não oferte lugares de lazer, serviços ou comércios, sabe-se que a caminhada é um bom exercício para as pessoas. Não se pode negligenciar as demandas por deslocamentos nas pequenas cidades, as quais só agravam a violência contra as pessoas com mobilidade reduzida. Violência porque vai contra o outro, contra o direito do próximo. Realidade esta, ignorada por muitos gestores de gabinete que não conhecem a realidade das pequenas cidades e erroneamente entendem que somente as médias e grandes cidades possuem problemas. Pressupõem-se ainda que nas grandes cidades a infraestrutura e os serviços disponibilizados são mais desenvolvidos, contudo, num mesmo espaço delimitado existem disparidades que apresentam acentuadas desigualdades sociais pela descontinuidade de ações e projetos, fragmentando a cidade e a população.

Muito já foi planejado, pensado, executado e proposto, porém, muito necessita ser feito, repensado e analisado, baseado na concepção de que o universo populacional não pode ser fator limitante para a promoção das condições de mobilidade urbana e da própria cidadania.

Sabe-se que incluir os pequenos municípios nas políticas públicas urbanas envolve custos à União que particularmente, entendo ser possível e pertinente a partir da redistribuição das verbas e financiamentos para as ações, planos e projetos destinados às pequenas cidades. Como a maioria dos deslocamentos nelas é realizado por modo a pé, que seja investido no desenvolvimento de um programa de pedestrianização para as pequenas cidades brasileiras, levando-se em conta os aspectos e a diversidade local, não deixando de mencionar o uso das bicicletas, outra forma de deslocamento nas cidadezinhas. Paralelamente às ações de mobilidade urbana, investimentos para a promoção da qualidade de vida dos munícipes é medida essencial, com investimentos destinados à construção de praças, parques, academias ao ar livre, calçadões, dentre outros.

A pequena cidade não pode continuar a ser privada de toda e qualquer legislação de ordenamento do território, do direito à cidade, do direito de ir e vir de forma segura, da calçada acessível, de melhores condições de pavimentação, do desenho universal, da acessibilidade e mobilidade humana, justamente por não fazer parte de um contexto numérico determinado por um indivíduo ou grupo de pessoas alheias à realidade local e desconhecedores de um universo que demanda por direitos e deveres iguais aos demais munícipes. 

O respeito às diversidades não pode ter limites ou ser restritivo, sujeitando-se a condições impostas por um grupo isolado que também são humanos passíveis de adquirir uma patologia, sofrer um trauma e ter sua mobilidade reduzida temporariamente ou quando atingirem a velhice. Neste sentido, por mais que seja ímpar ou difícil, mas, não impossível, a presente pesquisa acredita ter despertado ao menos, o repensar sobre as pequenas cidades à margem de mais um instrumento de gestão urbana, o qual evidencia os aspectos de acessibilidade e o deslocamento das pessoas e mercadorias no território: Os Planos de Mobilidade Urbana. Buscamos dar visibilidade e encaminhar a ideia de inclusão das pequenas cidades nas políticas urbanas numa análise desde a Constituição Federal Brasileira. Espera-se que, mesmo num intervalo médio, o poder legislativo possa repensar suas ações e incluir as cidadezinhas no desenvolvimento de programas e projetos, já que todos nós somos pessoas que demandam por necessidades distintas, porém com os mesmos direitos.

Independente do universo populacional das cidades, nascemos com mobilidade reduzida, ganhamos autonomia e nesse intervalo todos somos suscetíveis a ter a mobilidade reduzida, mesmo que de forma temporária, e mesmo não adquirindo uma patologia que afetasse a autonomia no deslocamento, todos nós voltaremos a ter a mobilidade reduzida na velhice. Neste contexto, as pequenas cidades devem ser inclusivas com o desenho universal e incluídas nas políticas públicas urbanas.

Evidenciamos que somente a inserção dos pequenos municípios nos programas urbanos não resolve toda a problemática. É necessário apoio, capacitação, conscientização, planejamento, discussão e disponibilização de recursos humanos e financeiros para a elaboração de planos e construção de cidades acessíveis.

A pequena cidade pode e deve ser inclusiva e, incluída nas políticas públicas através da revisão da legislação ou de programas específicos destinados à promoção gradativa da acessibilidade e mobilidade. É possível, através da aplicação das normas técnicas e dos parâmetros do desenho universal, reestruturá-las, tornando-as acessíveis e mais humanizadas.

* Nádia Cristina dos Santos Sudário é geógrafa, mestre em engenharia vivil, doutora em geografia urbana (UFU) e coordenadora-adjunta do Colégio de Representantes Institucionais do Crea/MG
** Este artigo é um resumo da tese de doutorado Mobilidade e Acessibilidade em Pequenas Cidades: proposições para a inclusão dos pequenos municípios na elaboração dos planos de mobilidade urbana, apresentada à Universidade Federal de Uberlândia em 2017


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