Medo da covid-19 pode gerar onda de migração para carro e moto

Incentivo ao transporte individual é retrocesso: além de tirar passageiros de ônibus e metrô, levará a um aumento perigoso no número de acidentes, dizem especialistas

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Fonte: Folha de S. Paulo  |  Autor: Artur Rodrigues e Thiago Amâncio  |  Postado em: 15 de julho de 2020

Fila de ônibus em Fortaleza: medo das aglomerações

Fila de ônibus em Fortaleza: medo das aglomerações

créditos: José Cruz/ Agência Brasil

Uma das primeiras medidas que a cidade de São Paulo tomou quando começou a se fechar para tentar controlar a pandemia do novo coronavírus foi suspender o rodízio de automóveis. O plano era liberar a população de aglomerações em ônibus e metrôs.

 

Na sequência, municípios da Grande São Paulo anunciaram que suspenderiam o transporte coletivo — o que não chegou a acontecer, por pressão do governo paulista. Em João Pessoa, capital da Paraíba, os ônibus foram suspensos no fim de março e só voltaram a circular no começo de julho, mais de três meses depois.

 

País afora, governos e médicos desincentivaram a população a tomar o transporte público durante a pandemia da covid-19, a fim de evitar a disseminação do vírus.

 

Especialistas temem, no entanto, que, num cenário em que a vacina não fique pronta logo e o distanciamento seja estendido, o incentivo ao uso do carro provoque efeitos negativos nas cidades. As consequências seriam aumento da poluição, ocupação de leitos hospitalares por vítimas de acidentes e uma segregação ainda maior entre pobres e ricos.

 

O médico Allan Rocha, de 28 anos, só usava transporte público para ir aos hospitais onde atua, em São Paulo. O mais distante fica em Santo André, na região metropolitana, aonde ia de trem. Depois que a pandemia começou, porém, só usa Uber para se locomover.

 

"Troquei pela minha proteção, mas também pela dos outros. Por trabalhar em hospital, não queria expor as pessoas. Ainda prefiro o transporte público, pela economia e porque muitas vezes é mais rápido. Mas, enquanto durar a pandemia, infelizmente pretendo continuar usando o Uber", afirma.

 

Em pesquisa feita em abril pelo BID (Banco Interamericano de Desenvolvimento) com 33 mil usuários do transporte público em cidades latinoamericanas, 3% dos entrevistados no Rio e em São Paulo afirmaram que pretendem evitar o transporte público mesmo que as restrições impostas pelo vírus sejam suspensas.

 

"Em São Paulo e em outras cidades brasileiras tivemos décadas de um urbanismo rodoviarista, com foco na construção de avenidas, túneis, pontes, pensando no carro como solução individual, com redução do transporte público", diz Bianca Tavolari, professora do Insper e pesquisadora do Cebrap.

 

"O problema da política que valoriza o carro é que você pensa só no proprietário daquele bem, o que não é o caso da maioria das pessoas. É uma solução individual", afirma.

 

"A gente estava começando a reverter o investimento [feito no transporte individual nas últimas décadas], e voltar ao carro é um retrocesso. O que a pandemia pode ajudar é a pensar num transporte de qualidade, que não seja aglomerado, e que seja seguro para as pessoas". 

 

Trânsito parado na Radial Leste, em SP: "o velho normal". Foto: Carlos Amoroso/Fotos Públicas

 

Nas capitais brasileiras, as gestões municipais constataram que a circulação de automóveis caiu muito menos durante a quarentena do que a demanda por ônibus e metrô.

 

"Nossa demanda pelo transporte público caiu entre 60% e 80%, enquanto a circulação de automóveis caiu só 20%. Quem pode, preferiu usar o automóvel", diz o secretário extraordinário de Mobilidade de Porto Alegre, Rodrigo Tortoriello.

 

"E isso é um risco grande. Por uma questão de espaço físico, que não suportamos mais, pelo aumento da poluição e pela quantidade de acidentes, porque isso ocupa leitos de hospital, que são fundamentais agora", completa.

 

Mais mortes

Levantamento do Conselho Federal de Medicina estima que esses acidentes custaram ao SUS (Sistema Único de Saúde) cerca de R$ 3 bilhões na última década.

 

Só no estado de São Paulo, 1.974 pessoas morreram no trânsito até maio deste ano, número pouco menor do que o registrado no mesmo período do ano passado, quando morreram 2.095 pessoas. Jovens de 18 a 24 anos e motociclistas são os grupo com mais óbitos. Além disso, ocorreram 62 mil acidentes não fatais nos cinco primeiros meses do ano.

 

O médico Carlos Alberto Eid, coordenador do Departamento de Atendimento Pré-hospitalar da Associação Brasileira de Medicina de Tráfego, ressalta que por enquanto a prioridade é diminuir as mortes por coronavírus, agora na casa de mais de mil por dia, em média.

 

"O trânsito matou 110 por dia no ano passado. A prioridade hoje é reduzir o número de mortes por coronavírus e um dos pontos de transmissão bem forte é a proximidade física, o contato físico, a aglomeração é um dos fatores da disseminação”, diz Eid.

 

O médico destaca que, além da aglomeração, o transporte público tem muitas superfícies de contato. Por isso, considera natural que em um primeiro momento as pessoas optem por estar em veículos onde estão sob menor risco de contágio.

 

Dante Rosado, coordenador da Iniciativa Bloomberg de Segurança Viária Global, afirma que em um cenário de prolongamento da crise pode haver intensificação do risco no trânsito.

 

“Essa população pode migrar para o transporte individual, que cria outras questões. Se for automóvel vai gerar congestionamento, poluição e outras questões, mas é mais provável que aconteça para a motocicleta, que é o meio de transporte mais barato e arriscado”, diz Rosado.

 

Alternativas

Ele lembra que cidades mundo afora se aproveitaram da redução no fluxo de carros durante a quarentena para colocar em prática alternativas que reduzem o espaço dos automóveis e ao mesmo tempo criando opções ao transporte público cheio.

 

É o caso de Paris, por exemplo, onde a prefeita Anne Hidalgo liberou que bares e restaurantes usem vagas de carros nas ruas para abrir mesas e servir os clientes nas calçadas, além de proibir a circulação de carros em ruas importantes, liberando o trânsito de bicicletas.

 

O uso do asfalto como uma maneira mais segura para reabrir restaurantes, agora ao ar livre, também começou a ocorrer em Nova York.

 

Na América do Sul, a capital da Colômbia, Bogotá, implantou ciclovias temporárias desde o começo da pandemia, para incentivar as pessoas a trocarem os ônibus cheios pelas bicicletas.

 

Luís Antonio Lindau, diretor de cidades da WRI Brasil, diz que um dos melhores jeitos de manter a população utilizando o transporte público é fazer com que passe menos tempo dentro dele. Uma solução rápida seria a implantação de uma grande quantidade de faixas de ônibus à direita, que são rápidas de serem feitas e baratas.

 

“Se a gente retomar ao normal e as pessoas saírem do ônibus, teremos mais carros circulando. Nós precisamos segurar o espaço para o transporte coletivo”, disse Lindau. Na tentativa de evitar veículos superlotados, as viagens mais rápidas melhorariam a oferta do transporte.

 

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