Ladeiras da preguiça, da vida

Em novo artigo, José Osvaldo Martins discute os problemas da caminhada quando o relevo não é lá muito favorável e as calçadas também não ajudam

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Fonte: Mobilize Brasil  |  Autor: José Osvaldo Martins*  |  Postado em: 28 de janeiro de 2021

Calçadas com rampas de carros em rua de São Paulo

Calçadas com rampas de carros em rua de São Paulo

créditos: Fotos: José Osvaldo Ferreira Martins


Olá, aqui estamos de novo, neste louco começo de década, contando, é claro, com a força do nosso amigo Expedito, o cara das causas urgentes e quase irrealizáveis (e bem antes de Tom Cruise). Afinal, mudar a visão dessa gente com motor na cabeça é uma missão perto do impossível.


Desta vez vamos falar um pouco dos sobes-e-desces das cidades, as ladeiras, ribanceiras, os desníveis impostos pelo relevo de algumas cidades. Não é preciso ser nenhum especialista em topografia para saber como é duro, cansativo, enfrentar o desafio das ladeiras urbanas, especialmente quando as calçadas são cheias de barreiras.


Altos e baixos da vida

Se a topografia das cidades muitas vezes não é favorável à caminhada (ainda mais nesse mundo voluntariamente sedentário em que vivemos) fato é que a estrutura das ruas e calçadas também não nos convida a andar. Quando a calçada é intransitável e somos empurrados a caminhar pela pista, notamos que em geral o asfalto também é bem ruim para caminhar. Basta olhar ao redor e conferir.


Rampas de acesso a garagens: calçada intransitável  Foto: José Osvaldo Ferreira Martins

 


Você, caro leitor, poderia dizer: "Mas poxa, toda cidade tem subidas e descidas!” É verdade, mas quando comparamos algumas localidades, as diferenças são muito evidentes. Por exemplo, cidades como Salvador ou São Paulo, nascidas em colinas, e Brasília, uma cidade planejada e situada num planalto. Da mesma forma, cidades litorâneas ou outras interioranas, que estão situadas em planícies podem ter uma variação mais suave em seu relevo, o que favorece o deslocamento a pé e mesmo de bicicleta. Guaratinguetá, município no interior do estado de São Paulo, é um exemplo de cidade com grande área plana, o que faz com que uma caminhada seja mais suave (apesar do calor que faz por lá) e a que a bicicleta seja um dos principais meios de transporte utilitário. O mesmo pode ser visto em muitas cidades do Brasil, centros urbanos em que a geografia natural facilita a mobilidade a pé, de bike, ou em cadeira de rodas. Mas, infelizmente, essa não é a realidade na maior parte dos municípios: ladeiras, barrancos e pirambeiras são comuns em muitas áreas urbanizadas.

 Escadarias e elevadores


Viela em bairro de São Paulo: escadarias e rampas para águas Foto: José Osvaldo Ferreira Martins

 

Salvador, a capital baiana dividida em Cidade Alta e Cidade Baixa devido, obviamente, ao relevo, foi uma das primeiras - talvez a primeira cidade do mundo, segundo algumas fontes - a contar com um sistema de elevadores públicos, permitindo a mobilidade e a acessibilidade, lá nos anos 1870. Foi uma iniciativa visionária e revolucionária. Na pesquisa para este artigo, descobri, tardiamente, que há até mesmo aplicativos que mapeiam a topografia de algumas cidades, de tal forma que ciclistas possam planejar trajetos menos cansativos, e outros para que skatistas praticantes de downhill encontrem ladeiras para descer em alta velocidade.

 

Elevador funicular Gonçalves, em Salvador (BA): solução do século 19, ainda em uso Foto: Prefeitura de Salvador

 

Aplicativos e mapas
Curiosamente, não existem aplicativos estritos para quem anda a pé. Os disponíveis abordam questões como o gasto de calorias e frequência cardíaca, pensando na caminhada como esporte. Outros tratam de colocar o caminhante como um usuário de outros meios de transporte como ônibus e trem, então o que se pode perceber é que caminhar parece na visão das pessoas com algo momentâneo, nunca um fim em si mesmo, um meio de transporte por si só. Nenhum dos aplicativos que encontrei para pedestres oferece mapas com relevo detalhado e trajetos inteligentes, feitos para andar mesmo

 

Os mapas on-line, guiados por satélite, também não são muito intuitivos. É difícil perceber olhando aqueles mapas o tamanho (e a inclinação) da subida que você vai encarar. Outro dia, visitando um amigo, ajustei o aplicativo para “ir a pé” de uma pousadinha onde eu estava até sua casa. O mapa do celular me fez andar por cinco quarteirões em subida, em um trajeto de quase 1,5 km. Quando cheguei ao meu destino, percebi que o caminho mais racional seria plano, em linha reta, e a cerca de 300 metros do local de hospedagem. Será que nem mesmo os algoritmos entendem de mobilidade? :-)

 

Mas, felizmente existem boas iniciativas. A prefeitura de Belo Horizonte, por exemplo, criou um mapa de declividades para discutir questões de mobilidade. E outras cidades também têm mapeado os locais íngremes, incluindo mapas altimétricos com foco em quem caminha. Lisboa, em Portugal, foi mapeada por outra iniciativa, o Horizontal, e chegou-se à conclusão de que 63% das ruas tem menos de 4% de inclinação. Esses dados foram colhidos pensando, de novo, em quem usa bicicleta, mas acabam ajudando quem caminha. E o Google Maps conta com um recurso para orientar a caminhada, mostrando os altos de baixos do caminho.


Exemplo de rota pedestre do Google Maps, com a indicação, distância, tempo e altimetria do trajeto

 

Se a vida de quem caminha a pé é cheia de altos e baixos e planificar as cidades é algo impossível, sendo então inevitável enfrentar as ladeiras, por que não retrabalhar as calçadas, para torná-las mais regulares e suaves ao caminhar? Ao contrário, em ruas inclinadas, o espaço destinado aos pedestres é uma imensa escadaria, uma estranha escada diagonal, que com certeza não serve pra caminhar. Uma escadaria estranha, que se forma onde seria o local para andar, parecendo até um quadro abstrato, como um desenho de Picasso em cimento.

 

Rampas para subir na vida

Por motivos estranhos ao bom urbanismo, na maioria das ladeiras o nível das edificações quase sempre difere do nível das ruas. E assim, cada morador foi fazendo sua rampinha para facilitar o acesso do onipotente automóvel. Uma acessibilidade reversa! Talvez as rampas sejam o maior e mais recorrente problema de mobilidade das grandes cidades. No entanto, nas pesquisas, geralmente as pessoas citam primeiro buracos, lixo, postes e a faixa estreita de calçada, mas raramente citam as rampas, e arrisco um palpite: muitas delas têm rampas na entrada de suas casas e não veem isso como um problema, ou mesmo acreditam que seja direito do morador fazer essas intervenções, “porque afinal a calçada pertence ao dono do imóvel e ele pode decidir o que fazer com ela!”. Um engano total, mas adotado pela maioria das pessoas.


A calçada é parte da rua pública, e portanto, é de todos. Se um morador impede ou dificulta a passagem de qualquer pessoa na calçada estará completamente errado. Segundo essa mesma lógica absurda, você caminhante também poderia antepor obstáculos - muretas, degraus, valetas - na pista de quem está se locomovendo motorizado. Com certeza o chamariam de maluco, e você poderia ser agredido ou interpelado pela polícia. Mas essa é a lógica do cara que constrói rampas e murinhos na calçada. Ninguém - ou pouca gente - reclama porque parece normal, é uma prática socialmente aceita. Mas, se impedirmos o fluxo dos carros, aí arrumamos uma grande treta. 

 

 
Ladeira em bairro periférico de São Paulo: onde está o lugar do pedestre? Foto: José Osvaldo Ferreira Martins

  

Um nível abaixo, um nível acima
Em bairros mais acidentados o cidadão constrói seu lar e quase sempre o embasamento da construção fica em um cota diferente do nível da rua. Se as fundações estão abaixo da rua, faz-se uma rampa para descer com os veículos; se a construção está em um nível mais alto, a rampa sobe. Mas em nenhum dos dois casos o pedestre é levado em consideração. Também são comuns as escadinhas que as pessoas usam para entrar nas residências, frequentemente construídas sobre uma parte do passeio. Pelas normas e regulamentações das cidades, essas escadarias deveriam ser feitas dentro da propriedade.


O arquiteto e professor José Henrique de Souza, do escritório de arquitetura e design Um Pé de Ideia, explanou alguns dos pontos que levam a esse problema: a mentalidade corrente voltada aos carros e os incentivos ao seu uso; o crescimento desordenado da cidade; e as construções realizadas sem consulta a profissionais.


“O problema não é ter um carro", disse o arquiteto, mais conhecido pelo apelido Aspi. "O problema reside no fato de haver esse fomento (ao automóvel), mas não haver orientação clara para a população de como construir uma casa, de como manter um calçamento adequado. De acordo com alguns estudos, estima-se que aproximadamente 80% das pessoas não procurem um profissional de projeto quando vão construir ou alterar algo em suas casas, e daí advém que muitas coisas estejam fora de um padrão mínimo e lógico de qualidade. No caso das calçadas, a pessoa teria que mantê-las niveladas e uniformes, e fazer a adequação para acesso do automóvel na área interna de sua propriedade. Mas, pensando em otimizar o uso do terreno, o que a imensa maioria faz é construir as rampas do lado de fora”, avalia Souza.


Em outras palavras: ninguém quer gastar tempo e dinheiro para arrumar e adequar sua garagem, e assim, é mais fácil, barato e rápido improvisar as tais rampinhas. Jeitinho brasileiro?

 

“Nos bairros centrais ou áreas “nobres” das cidade, costuma ser mais tranquilo andar, pois há um maior olhar por parte do poder público para esta estrutura, mas quando seguimos em direção as áreas intermediárias ou periféricas a fiscalização diminui e consequentemente a qualidade das calçadas também diminui”, pondera José Henrique de Souza.


Eu mesmo, quando pequeno achava agradável, numa noite quente, sentar com a galerinha nos degraus na frente da casa de alguém pra ficar batendo papo. Somente depois, mais velho, fui perceber que aqueles degraus que nos aconchegavam eram uma bizarrice arquitetônica e 'dessacessível', um erro que se tornou padrão..

 

“Mesmo pessoas estudadas e graduadas na área de projetos e construção muitas vezes não entendem o tema da mobilidade como algo importante. Cheguei a ter colegas que criticaram a prefeitura de São Paulo, quando a gestão implementou os corredores de ônibus, o que para alguns deles provocaria atrasos para quem anda de carro”, completa o arquiteto Aspi. Ora, se parte das pessoas que estudam para planejar e construir de forma inteligente as casas e espaços públicos pensam que mobilidade é um luxo, imaginem o que passa pela cabeça dos leigos... 

 

Mas, há solução?  Essa questão é transversal e muito mais complexa do que parece à primeira vista, envolve educação que falta à população, também envolve economia, política, habitação, ecologia, passa por estrutura pluvial, mobiliário público (postes, placas, árvores) etc. Então, resolver esse problema das rampinhas nas calçadas não é uma tarefa tão simples e fácil.


Acredite, há lugares onde isso é possível. Veja o exemplo de São Francisco nos Estados Unidos, cidade que ficou famosa por seus filmes de perseguição e ação em suas ladeiras e morros. Lá a maior parte das calçadas em ladeiras são regulares, largas e lindas para caminhar. 

 


Calçadas nas ladeiras íngremes de São Francisco (EUA): guias rebaixadas e rampas no interior dos lotes Fotos:wikipedia/Sf.Stephens


Creio que toda mudança começa na cabeça das pessoas. Enquanto o caminhar não for considerado como algo sério, como modo de mobilidade, não haverá calçadas caminháveis. A subida pode ser uma descida, e uma descida pode ser uma subida, dependendo de onde se olha. Então, sejamos positivos. Pense, converse, aja, propague a ideia. E continue caminhando.

 

*José Osvaldo Martins é jornalista de formação, com especialização em Ensino Lúdico e extensão em Geografia Urbana, entre outras. É trabalhador, pagador de impostos, cidadão, pai, escritor quando há tempo, motorista habilitado, ciclista por prazer, mas no fundo só um caminhante que vive e circula na Grande São Paulo.


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Comentários

Leo Martins - 10 de Março de 2021 às 18:42 Positivo 0 Negativo 0

Mobilidade assunto extremamente importante de ser discutido e assim pensarmos políticas públicas. Como bem exposto no texto, aliás belíssima reflexão diga-se de passagem, não se refere somente a habitação, mas diria que também a inclusão e saúde. Já

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