A baixa mobilidade na grande cidade

O caminhante José Osvaldo Martins discute os desafios para idosos e pessoas com deficiência nas ruas e calçadas do Brasil. E aponta caminhos para transformar as cidades

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Fonte: Mobilize Brasil  |  Autor: José Osvaldo Martins*  |  Postado em: 31 de maio de 2021

Senhora idosa carrega sacolas em uma feira de São

Senhora idosa carrega sacolas em uma feira de São Paulo

créditos: José Osvaldo Martins


Vamos começar com o mito da Esfinge de Tebas. Para chegar ou sair da cidade, os viajantes precisavam passar por uma terrível esfinge. A todos ela fazia a seguinte pergunta: “Que animal anda pela manhã sobre quatro patas, à tarde sobre duas e à noite sobre três?” Aqueles que não sabiam responder, eram devorados pelo monstro. Um deles, quando indagado, após pensar um pouco, respondeu: “O homem, pois engatinha na sua infância, anda ereto na juventude e usa uma bengala para se apoiar na velhice.” Ao ver o enigma decifrado, a esfinge caiu morta.

 

Estima-se que até 2050 a população mundial chegue a 9 bilhões. Hoje, maio de 2021, somos 7,8 bilhões e, segundo as estatísticas, cerca de 1 bilhão e cem milhões de pessoas já têm mais de 60 anos, no mundo atual. No Brasil, segundo as projeções do IBGE, os idosos são hoje 29,9 milhões e podem chegar a 70 milhões ou mais em trinta anos. Então, em 2050, o Brasil terá mais idosos do que crianças.

 

Em relação às pessoas com deficiência, hoje, segundo dados da Organização Mundial de Saúde (OMS), existem quase 1 bilhão de pessoas com alguma deficiência no mundo. No Brasil, as pessoas com limitações mais graves somavam 12,5 milhões, conforme o censo de 2010. Eu acredito ser muito mais, e a própria pesquisa do IBGE apontava que 42 milhões de pessoas tinham alguma restrição física ou mental que dificultava a sua integração na vida social: pessoas com problemas de coluna, que mancam de uma perna levemente, alguém vítima de derrame, ou aqueles que usam muleta temporariamente por terem quebrado a perna, muitas vezes não entram nessa conta.

 

"Membros inferiores"
A parte de baixo de nossos corpos, o tal aparelho locomotor, é o nosso principal veículo de locomoção. No entanto, essa região, que de forma simplificada compreende o quadril, as coxas, joelhos, pernas, tornozelos e pé, é tratada com certo desdém pela própria nomenclatura. São os membros inferiores...Por outro lado, os órgãos vitais ficam localizados na cabeça e no tronco, e se uma pessoa perde alguma parte abaixo da cintura consegue continuar seguir vivendo, embora com menos qualidade de vida.


Por tudo isso e por simples conceitos como alto e baixo, o aparelho locomotor é tido como algo menos importante numa hierarquia subconsciente. Imaginamos que somos apenas a parte alta de nosso corpo e o que está abaixo é apenas um aparelho, no nosso pensamento a parte de baixo é tida como algo menos nobre. Ora, não deveria ser assim, pois das pernas vem quase toda nossa autonomia e independência, é o que nos transporta pelo mundo, ou seja, muito importante. Mas as pessoas somente percebem o quanto dependem dessa parte do corpo quando surge algum problema. Sim, ninguém é só pernas, mas que falta elas podem fazer!
 

                                                Uma idosa arrasta um carrinho de compras Foto: José Osvaldo Martins


A locomoção, os desafios e a vontade
No Estatuto do idoso e no Estatuto da pessoa com deficiência consta claramente que qualquer ato ou omissão que fira os direitos dessas pessoas, em ter as mesmas condições de gozo de sua cidadania que os demais, seja um desrespeito a sua dignidade.


Do ponto de vista da mobilidade, essas pessoas estão sendo desrespeitadas a todo momento, e por quem? Por todos que aceleram quando um idoso atravessa a rua na conversão e talvez até por você mesmo, que constrói uma rampa de automóvel na calçada e impede que o cadeirante passe. Ou você que monta a barraquinha na passagem do pedestre, que abre o portão para fora da residência, ou que coloca sua placa de propaganda em cima do piso tátil. Todos, com suas pequenas infrações, estão prejudicando estas pessoas e a cidade.


Mais do que responsabilidade do poder público e questão de consciência individual e coletiva, pouco adiantará - atenção ativistas de mobilidade! - cobrar o governo se não mudarmos a cabeça do cidadão comum. E eu pretendo abordar, em artigo futuro, o porquê dessa invisibilidade do conceito de mobilidade junto ao público geral.


Como é para um idoso, um deficiente ou alguém com baixa mobilidade se locomover por aí? Difícil, inseguro, desconfortável, são palavras que vem à mente da maioria. Só não é impossível, porque como sempre a vontade, essa mola propulsora das pessoas, é sempre maior que as adversidades. O quanto ainda temos que melhorar a estrutura e mesmo o entendimento da sociedade para superar essas barreiras é a questão.


Os equipamentos públicos, como calçadas, faixas de pedestre, semáforos, rampas, pisos táteis e outros, são coisas a serem melhoradas, implementadas e refinadas, claro. Mas a forma como nós, sociedade, vemos o assunto é o que fará a verdadeira diferença e se não entendermos que isso diz respeito a todos nós, pouco adianta mudanças materiais. Temos que fazer o cidadão dito saudável pensar, em como é empurrar uma cadeira de rodas por estas cidades, sensibilizá-lo, tocá-lo. Ele nunca pensou nisso? É por que talvez nunca tenha precisado.
 

                                                                Cadeirante em travessia. Foto: José Osvaldo Martins



Embora a medicina e a indústria das próteses venham evoluindo exponencialmente e facilitando a vida das pessoas, as soluções ainda são caras e sua eficiência ainda deixa muito a desejar. Aliás, quem pode dizer como estará o mundo em 2050? Mais que uma previsão de futurologia, ninguém sabe ao certo como estaremos daqui a trinta anos.


Dizem alguns, que os carros serão autônomos e as cidades inteligentes. Mas inteligentes para quem?
Será que para idosos e deficientes as mudanças serão significativas, visto que as soluções e produtos, por lógica econômica são na maior parte das vezes voltadas para os jovens produtivos e economicamente ativos, os tais “normais”. 

 

Sabemos, o que dita o mundo é a sobrevivência e seu sinônimo, a economia; se algo não tem potencial de exploração econômica dificilmente é visto como importante. É a dura verdade. Quando a ONU faz estudos sobre população, está principalmente preocupada com o quanto podemos ainda progredir e desenvolver sem que a sociedade humana entre em colapso. Ou você acha que eles realizam tantas pesquisas e estatísticas porque são bonzinhos?

 

Economia: Eco = casa, ambiente; Nomia = cuidar, administrar
Economia se refere ao cuidado, desenvolvimento, gerenciamento de recursos e manutenção de um lugar. Aplicando o conceito globalmente, no caso a nossa casa é o planeta, então economia é o que fazemos para manter nosso mundo funcionando de forma que se sustente. A questão das pessoas com deficiência e sua reintrodução na sociedade de forma produtiva passa pela questão econômica, reabilitar e fornecer condições dignas de trabalho, além de incentivar o indivíduo também gera produção e isso interessa a toda sociedade.


Da mesma forma, é burrice dizer que idosos são improdutivos, muitos optam por manter suas atividades e outros mesmo precisam trabalhar em idade avançada, eles também pagam impostos, consomem, criam.  Ou quando um idoso cuida dos netos para que os pais possam trabalhar, indiretamente ele está gerando lucro ao sistema.

 

Paradoxo e paradigma na mobilidade com deficiência
Entre amigos e colegas, conheço pelo menos uma dúzia de pessoas com deficiência, todos profissionais reabilitados que trabalham e são ativos, entre eles cadeirantes, outros com pernas mecânicas e alguns que usam muleta. Uma coisa todos têm em comum, nenhum deles já ouviu falar em mobilidade ativa, é um assunto o qual não tem a menor ideia do que seja, esse desconhecimento do assunto por parte dessas pessoas, a quem em tese mais interessaria uma cidade acolhedora, nos diz como o tema mobilidade é estranho a sociedade. Não é questão de ignorância, é que este ainda é um tema desconhecido por grande parte da sociedade.


Veja, nenhum deles costuma usar ônibus para ir ao trabalho, quase todos optam pelo carro, ora, isso porque o transporte público é ineficiente e pouco prático para alguém com restrição de mobilidade. Também não percorrem grandes distâncias “a pé” pois sabem concretamente que a cidade não é propícia para caminhar com uma prótese e menos ainda em cadeira de rodas. O fato de optarem pelo automóvel individual diz muita coisa sobre o nível de mobilidade em que nós encontramos; baixíssimo. E a solução para todos os problemas acaba sendo o de sempre, o carro.


Uma experiência curiosa, que atesta o que digo: coloque a palavra PCD no seu navegador de internet, a maioria das primeiras sugestões estarão relacionadas a como comprar automóveis para pessoas com deficiência, o que mostra que a procura principal deste público é como ter seu próprio automóvel, isso nos diz muita coisa! A grosso modo, quando colocamos uma palavra em nossa barra de pesquisa, o navegador exibe as páginas que julga mais relevantes baseado em páginas mais acessadas pelas pessoas. Então, o principal interesse das pessoas PcD atualmente, é em como adquirir um carro com desconto de impostos, um benefício concedido pelo governo a essa classe de pessoas. É uma simples constatação, mas revela como deve ser difícil para uma pessoa com  deficiência circular no transporte público ou nas calçadas deste país.


Podemos então deduzir, que as principais dúvidas das pessoas com deficiência, não são sobre mobilidade ativa, melhorias no espaço urbano, transporte público, avanços em tratamentos médicos, etc. Essas pessoas, sabendo de antemão que a cidade de forma geral não é amistosa a quem tem alguma dificuldade de locomoção, estão resolvendo seu problema da forma mais prática, comprando o bom e velho carro para poder ter alguma autonomia. É o tal, se não pode vencê-los, junte-se a eles.


Numa análise rápida e sendo francos, esse é o efeito do fato de as cidades não serem construídas para se mover a pé.  O que é mais fácil para um cadeirante, rodar sua cadeira por aí se arriscando pelo asfalto e pegando ônibus, ou ter seu próprio carro e depender o menos possível dos outros? Causa e efeito, num esquema de retroalimentação, o cara compra o carro porque a cidade não convida a caminhar, a cidade não convida a caminhar por causa dos carros.

 

O idoso e o deficiente em teoria deveriam ser os públicos mais interessados em ter uma cidade caminhável, ironicamente eles mesmos tiveram que se render ao carro.

 

Mesmo o termo “pessoa com deficiência” tem uma limitação evidente, debaixo de um mesmo guarda-chuva colocam-se pessoas com problemas de naturezas as mais diferentes, no mesmo termo juntam tanto pessoas com nanismo, autistas, amputados, com artrose avançada e tantos outros. Ou seja, pessoas com necessidades totalmente adversas umas das outras. Falando em mobilidade, o que tem em comum uma pessoa cega com outra que usa prótese na perna? Além de estar colocada nesse tal PcD praticamente nada. Ao percorrer uma rua um cadeirante vai encontrar obstáculos que pra alguém surdo serão outros. Ou uma pessoa com IMC alto não terá também muitas dificuldades em se deslocar a pé?


Mesmo dentro de um certo grupo pode haver variações, por exemplo, há cadeirantes que usam de cadeiras motoriizadas, outros que usam como força de locomoção apenas seus braços e outros ainda que dependem de alguém que os empurre, isso não vai lhes colocar em diferentes situações dificuldades e vantagens em relação de um para o outro?


Um dos parâmetros mais simples e efetivos para medir a mobilidade de um lugar deveria ser, o de poder passar uma cadeira de rodas pela calçada em linha reta, sem desvios e obstáculos, de um lado ao outro do quarteirão. Olhe o quarteirão onde fica sua casa, indo pela calçada, dá pra passar de cadeira de rodas de um lado ao outro sem interrupções? Sem precisar ir pra o asfalto? Todo trajeto é plano?!

 

O futuro a quem pertence?
O alto número de pessoas em situações diversas de saúde também nos leva a outro fenômeno, a busca da cura e de soluções para as mais variadas enfermidades. Há milhões de pessoas no mundo só esperando uma solução para poderem se mover como gostariam, do outro lado há pesquisas financiadas, sobretudo, por empresas ávidas em ganhar dinheiro com isso. É uma indústria com potencial enorme de ganho, dado o número de pessoas que querem e precisam melhorar suas vidas..

Talvez essa seja a indústria do futuro: resolver problemas de saúde crônicos como a cegueira ou a imobilidade, áreas antes subestimadas e esquecidas que agora podem se tornar economicamente viáveis. 

 

Quanto é que será interessante para as empresas a resolução de problemas de uma parte da população, como os amputados? Por exemplo, transformar a deficiência em eficiência talvez seja a nova área a ser explorada, as empresas que puderem trazer soluções práticas e baratas vão lucrar com um nicho relegado à invisibilidade nos dias atuais. Imagine que se uma perna protética puder ser ao menos tão boa quanto uma orgânica, teremos finalmente seres humanos biônicos, isso sim fará uma diferença grande na vida das pessoas, quem sabe até com funções melhoradas. E mais, acredito que se der muito certo, sabendo das tendências humanas, vai ter até gente cortando a perna só pra botar uma prótese biônica. Vejam este artigo: As próteses do futuro irão recuperar as sensações físicas.


Mas se a ciência promete avanços sem precedentes na cura de doenças, por outro lado, como as cidades vão se moldar nesse futuro próximo? Os desafios que o futuro nos propõe são muitos, se a medicina vai ajudar nossa vida pra melhor, o quanto não teremos que avançar ainda, arquitetônica e mentalmente, para propiciar uma vida de movimento a todos.

 

Um passeio pelo mundo livre
Terminemos com um exercício mental. Imagine-se sendo um idoso com a articulação das pernas já durinhas pela artrite, uma pessoa que não enxerga, ou outro com suas próprias dificuldades, qualquer um, use sua imaginação.  Agora se transporte para a realidade dele, suponha que você tem que fazer qualquer coisa, uma coisa bem trivial como comprar pão na padaria. Imagine você com essa dificuldade, subindo uma ladeira, desviando dos obstáculos da calçada, os motoristas apressados tirando fina de você, os buracos pelo caminho, a indiferença de todos... Agora acrescente chuva, ou vento frio, sol escaldante, ponha uma sacola pesada ou duas, um galho caído ou uma obra pelo caminho, o semáforo está quebrado, não há semáforo...Olhando assim, uma coisa tão comum parece uma jornada fácil?

 

Fato é: as cidades (ainda) não são feitas para caminhar, seja para a crianças, para o idoso, para o cara de muletas ou para quem tem uma saúde invejável. E você, que idade terá daqui a trinta anos, ou como estarão suas pernas quando você chegar lá? Um passo à frente e você não está mais no mesmo lugar. Palavras para reflexão e ação. Continue caminhando. 

 

*José Osvaldo Martins é jornalista de formação, com especialização em Ensino Lúdico e extensão em Geografia Urbana, entre outros. É trabalhador, pagador de impostos, cidadão, pai, escritor quando há tempo, motorista habilitado, ciclista por prazer, mas no fundo só um caminhante que vive e circula na Grande São Paulo.

 

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