Brasilia Para Pessoas

30
abril
Publicado por Brasília no dia 30 de abril de 2021

Há mais de duas décadas começava a campanha que é motivo de orgulho e diferencia Brasília das outras grandes cidades brasileiras. Entenda como tudo começou.

Texto: Uirá Lourenço 

Homem andando na calçada

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Travessia em faixa da Asa Norte. Foto: Uirá Lourenço, Abril/2021.

Quem é de fora de Brasília estranha no início, mas logo se acostuma com o bom hábito de parar e dar passagem aos pedestres. Sim, aqui se respeita o pedestre na faixa. Eis mais um diferencial da cidade, além da arquitetura, que merece tombamento.

A preferência do pedestre está bem clara no Código de Trânsito Brasileiro (art. 70)1, mas não saiu do papel. Com exceção de cidades de menor porte e alguns bairros de cidades maiores (por exemplo, Jardim da Penha em Vitória/ES), o pedestre sofre sério risco ao atravessar numa faixa sem semáforo. Entre as capitais, Brasília é uma honrosa exceção.

Código de Trânsito

Art. 70. Os pedestres que estiverem atravessando a via sobre as faixas delimitadas para esse fim terão prioridade de passagem, exceto nos locais com sinalização semafórica, onde deverão ser respeitadas as disposições deste Código.

– Campanha de sucesso

Pessoas andando na calçada da rua

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Policial fantasiado ajuda na travessia. Foto: Correio Braziliense, março/1997.

Como Brasília – justamente a cidade construída com base no automóvel e cortada por vias de alta velocidade – conseguiu a proeza de os motoristas darem preferência aos pedestres? É importante relembrar como foi a campanha que resultou na mudança de comportamento.

Em abril a campanha completa 24 anos. Não morava em Brasília quando tudo começou. Para entender melhor, conversei com Ana Júlia Pinheiro, jornalista que trabalhava no Correio Braziliense e iniciou uma série de reportagens sobre as mortes no trânsito (íntegra da entrevista ao final). Também consultei notícias, trabalhos acadêmicos e o documentário Paz no Trânsito (link ao final). O acervo de dados e imagens, gentilmente fornecido por Nazareno Affonso (secretário de transportes à época), auxiliou bastante.

A campanha em si começou em 1997, por iniciativa do coronel Renato Azevedo e com o envolvimento de agentes de trânsito e policiais militares, que iam às ruas para ações educativas e de fiscalização. Mas o movimentou que culminou na sensibilização dos motoristas começou em 1996 com reportagens publicadas no jornal Correio Braziliense sobre o excesso de velocidade e os altos índices de mortes nas pistas.

Jornal com texto preto sobre fundo branco

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Capa do Correio Braziliense (14/9/1996).

Nos anos 90, as pistas do Distrito Federal eram uma selvageria. O limite de velocidade não era respeitado. Segundo dados do Departamento de Trânsito (Detran/DF), em 1995 a velocidade média chegava a 94 km/h no Eixinho Norte, 91 km/h na L2 Norte e 103 km/h na L4 Sul. Ou seja, a cidade era um autódromo! Naquele ano houve 652 mortes de trânsito, e 46% dessas mortes eram de pedestres atropelados. No segundo semestre de 1996, o Correio Braziliense começava a publicar notícias regularmente sobre a violência no trânsito, com destaque na capa. Entre agosto e novembro daquele ano era comum ter mais de uma notícia por dia sobre mortes no trânsito, fiscalização eletrônica e ações educativas. 

As notícias tiveram grande repercussão e o Correio Braziliense organizou uma passeata pela paz no trânsito no Eixão, realizada no dia 15/9/1996 com a participação de 25 mil pessoas. A mão espalmada – símbolo da campanha iniciada pelo jornal – é utilizada até hoje nas reportagens. Passeatas pela paz foram realizadas posteriormente em outros locais no Distrito Federal. Em dezembro de 1996, foi criado o Fórum Permanente pela Paz no Trânsito, na Universidade de Brasília (UnB), que buscava ampla participação da sociedade.

Multidão de pessoas

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Passeata no Eixão, 15/9/1996. Foto: Zuleika de Souza/Correio Braziliense.

O Governo do Distrito Federal (GDF) tomava medidas com o objetivo de aumentar a segurança no trânsito. O governador Cristovam Buarque (1995-1998) havia anunciado, ainda durante a disputa eleitoral, um programa para reduzir as mortes nas pistas. Em julho de 1995 o GDF publicou decreto que criava o programa Segurança para o Trânsito. Em outubro de 1996 o programa foi ampliado e passou a se chamar Paz no Trânsito.  

Segundo o coronel Renato Azevedo, comandante do Batalhão de Trânsito da Polícia Militar naquela época e idealizador da campanha pelo respeito na faixa, “Brasília era o grande escândalo brasileiro em termos de mortalidade no trânsito” (documentário Paz no Trânsito). Em 1996 começou a fiscalização eletrônica da velocidade no Distrito Federal, considerada uma condição indispensável para a futura campanha de respeito na faixa.

A inspiração para a campanha veio de fora. O coronel esteve na Espanha em 1995 e havia se impressionado com o respeito dos motoristas espanhóis com os pedestres. Então, ele decidiu pesquisar sobre o respeito na faixa em outras cidades do mundo e aplicar a lei em Brasília. 

Um dos aspectos marcantes foi o envolvimento da imprensa. O Correio Braziliense iniciou a cobertura diária sobre segurança no trânsito e depois outros jornais e emissoras passaram a cobrir o tema com maior frequência, em particular a Globo local (com destaque para o jornalista Alexandre Garcia). O coronel Renato Azevedo destacou a importância de envolver a mídia:

“Foi preciso vender a ideia, porque havia tanto no governo, quanto na mídia, um receio muito grande de que não desse certo a campanha e que pudesse haver muitas pessoas atropeladas, muitas mortes. Teria que haver todo um trabalho de convencimento. Eu, por exemplo, percorri as editorias de todos os grandes jornais, rádio e televisão de Brasília, falando pessoalmente com os editores. Como se diz no jargão jornalístico, numa redação, se o editor não quiser, a criança não nasce. Como eu queria que aquela criança nascesse, o respeito à faixa de pedestre, eu fui conversar com cada editor e obtive o compromisso de apoio.” Renato Azevedo, documentário Paz no Trânsito.

Como era esperado, houve resistência de alguns setores da sociedade. Alegava-se que a fiscalização da velocidade era uma ‘indústria da multa’. A oposição era liderada pelo então deputado distrital Luiz Estevão. Mas a mobilização da sociedade, as passeatas pela paz no trânsito e as notícias frequentes não deram chance para os opositores. O coronel Renato Azevedo comenta, no documentário, que o governador Cristovam Buarque assumiu o ônus ao tomar medidas antipáticas de controlar a velocidade e multar. Ele complementa de forma precisa: “Ninguém educa um filho só elogiando, tem que reprimir também.”

No início de 1997 se iniciaram as ações do governo para o respeito ao pedestre na faixa. Policiais passaram a monitorar as faixas de pedestre. No dia 1° de abril começaria a fiscalização com aplicação de multa aos motoristas infratores (antes dessa data os motoristas só eram advertidos). A partir do dia 22 de março o Correio Braziliense fazia a contagem regressiva de 10 dias – com o título ‘Pare na Faixa’ – para a lei entrar em vigor. No dia 2 de abril, o jornal publicava o resultado: ‘Balanço de 396 multas no primeiro dia: apesar de haver guardas de trânsito em cada quadra, as pessoas ainda hesitam na hora de parar na faixa’.

Diversas medidas auxiliaram a campanha. O Placar da Vida foi colocado no Eixo Monumental e indicava o número de mortes nas pistas a cada mês. O grupo de teatro Rodovia fazia encenações em escolas e nas ruas. Alunos de escolas ajudavam na sensibilização dos motoristas nos locais de travessia.  

Placar da Vida, instalado na frente do Palácio do Buriti, e ação realizada pelo grupo de teatro Rodovia (foto: Carlos Vieira). Material cedido por Nazareno Affonso.

Na pesquisa identifiquei fatores relevantes para o êxito do programa Paz no Trânsito, que podem inspirar outras cidades a seguir o exemplo:  a) cobertura jornalística e apoio da mídia; b) mobilização da sociedade; c) vontade política; d) ação conjunta entre diferentes órgãos governamentais e diferentes setores; e) corpo a corpo nas ruas – educação e fiscalização. 

O balanço no período de 1995 a 1998 foi positivo, com redução da velocidade média e mortes no trânsito. Segundo dados do Detran/DF, as mortes caíram de 652 para 430 e a velocidade média foi reduzida de 91 km/h para 57 km/h na L2 Norte, de 103 km/h para 69 km/h na L4 Sul.

Fica a homenagem a dois grandes nomes que se esforçaram para tornar realidade o respeito ao pedestre na faixa: Renato Azevedo, coronel que comandou o Batalhão de Trânsito e foi comandante-geral da Polícia Militar, e Luís Miúra, que foi diretor-geral do Departamento de Trânsito (Detran-DF).  

Duas pessoas fundamentais na campanha: Coronel Renato Azevedo (esquerda) e Luís Miúra (direita). Imagens: Correio Braziliense.

– Os desafios da segurança no trânsito

O respeito ao pedestre na faixa ainda perdura em Brasília, felizmente. Mas, ao caminhar pela cidade, noto certo risco nas travessias. Alguns motoristas fingem não ver os pedestres, que precisam acenar firme para lembrar da preferência. Em casa criamos o ‘berro cidadão’, que direcionamos aos motoristas apressados (ou distraídos ao celular). Os moleques se divertem quando emito o alerta na rua. Não é raro ver engavetamentos próximos aos locais de travessia, situação que se agrava no período de chuva (vídeo mostra flagrantes de desrespeito na frente de centro universitário).

Carro na rua de uma cidade

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Colisão de carros na faixa de pedestre, Asa Norte. Foto: Uirá Lourenço.

São fundamentais ações permanentes – educativas e de fiscalização – para reforçar o respeito na faixa. Vejo com alegria as fotos de 1997 e lamento não ver agentes de trânsito ou policiais monitorando os arredores de uma faixa de travessia, tampouco vejo artistas ou policiais fantasiados. A impressão é que as ações só ocorrem em datas esporádicas, como na volta às aulas e no mês de abril (aniversário da campanha paz no trânsito).

A sinalização (pintura e placas indicativas da travessia) e iluminação nas proximidades das faixas merecem atenção, manutenção regular. E as faixas elevadas de travessia seriam muito bem-vindas para auxiliar na redução da velocidade, mas elas ainda são escassas por aqui.

Outro ponto a destacar é o limite de velocidade. Certamente a situação melhorou desde os selvagens anos sem fiscalização eletrônica da velocidade, na década de 1990, mas ainda temos vias de alta velocidade (com limite de 80 km/h) como Eixão e L4. É fácil constatar que, longe dos radares, os motoristas passam dos 100 km/h. As marcas de pneu (freada) antes dos radares evidenciam o problema.

Ainda se mata muito no Distrito Federal. Em 2019 foram 273 mortes no trânsito, 85 dos quais pedestres atropelados. Hoje se fala em Visão Zero, uma estratégia em que nenhuma morte é aceitável, devendo-se buscar sempre maior segurança no trânsito. Sim, devemos nos orgulhar da civilidade brasiliense nas faixas de travessia, mas precisamos ir além e buscar uma cidade humanizada e segura. O envolvimento das autoridades, da mídia e da população é fundamental, como mostra o histórico da campanha Paz no Trânsito.

___________________

1 A campanha Paz no Trânsito se iniciou na vigência do antigo Código de Trânsito, de 1966, que já previa a preferência dos pedestres na faixa (art. 83, XI). O atual Código de Trânsito, sancionado em setembro de 1997 e vigente a partir de janeiro de 1998, manteve a preferência no art. 70.

Observação: Optei por usar a expressão ‘respeito na faixa’, em vez do ‘respeito à faixa’ (muitas vezes utilizada em anúncios e reportagens). A diferença é sutil, mas relevante no sentido. Entendo que o foco deve ser a pessoa, o respeito ao pedestre na faixa. Quando se diz respeito à faixa, destaca-se o elemento, como se a faixa em si devesse ser respeitada.

Agradeço à Ana Júlia Pinheiro, pela entrevista e pela indicação de material de pesquisa sobre o tema, e ao Victor Pavarino por indicar fontes sobre a campanha. Agradecimento especial ao Nazareno Affonso por disponibilizar o rico acervo de informações. 

Além de notícias e do documentário (abaixo), dois trabalhos acadêmicos me ajudaram a entender melhor a campanha e escrever este texto: 

– Placar da vida: bastidores da prática de jornalismo público que mudou o trânsito do Distrito Federal. Trabalho de Conclusão de Curso de Josivânia Ferreira dos Santos. Jornalismo/UniCEUB. 2008.

– O comportamento do brasiliense na faixa de pedestre: exemplo de uma intervenção cultural. Dissertação de Mestrado de Vívica Lé Sénéchal Machado. Instituto de Psicologia/UnB, 2007. 

VÍDEOS:

No primeiro vídeo, cenas de respeito da travessia na faixa em alguns pontos de Brasília. Imagens feitas neste mês de abril de 2021.

O segundo vídeo é um documentário em que foram entrevistadas pessoas fundamentais nas ações que resultaram no respeito na faixa.

Entrevista com a jornalista Ana Júlia Pinheiro:

– Quando e como começou a campanha de respeito ao pedestre na faixa?

A campanha do Batalhão de Trânsito da PMDF, que tinha como comandante o então Tenente Coronel Renato Azevedo, o idealizador da proposta, começou 90 dias antes de começar a valer a Faixa de Pedestre, antes de a multa por desrespeito ser cobrada. Desde 1º de janeiro de 1997, os motoristas que avançavam na faixa recebiam uma advertência em casa e um aviso de que o respeito a Faixa de Pedestre passaria a ser cobrado em 1º de Abril de 1997, uma data carregada de significado. Renato Azevedo deu muitas entrevistas para a imprensa a fim de divulgar o que pretendia: fazer cumprir um artigo do Código de Trânsito.  Lembro dos policiais militares distribuindo flores nas faixas para quem respeitava a movimentação das pessoas que atravessavam. Foi uma mudança incrível.

– Quais foram os fatores cruciais de êxito na campanha?

A redução drástica da velocidade média desenvolvida pelos condutores em Brasília apontou que ali estava a “janela de oportunidade” para implantar a faixa, na minha opinião e também já escutei do próprio coronel Renato Azevedo. Há vídeos e entrevistas do coronel Azevedo que ratificam este meu ponto de vista. 

Quando o Correio Braziliense iniciou a série de matérias que provocou a mobilização do governo local e da sociedade, em agosto de 1996, a velocidade média em Brasília era padrão autódromo: batia na casa dos 90 km/h – e estamos aqui falando de velocidade média. Quem encontrou esta cidade pronta, como está hoje, não imagina como era isto aqui.  

Da parte do governo, toda esta mudança de postura do GDF foi liderada pelo governador Cristovam Buarque, que tinha duas figuras chaves neste esforço: Luis Rioge Miúra, diretor do Detran-DF, e o coronel Renato Azevedo. Miúra media, regularmente, as velocidades nas vias do DF. Sabe qual era a velocidade média da L2 Sul? Acima de 90 km/h, sempre. O Eixão, acima de 100 km/h. Era como se as placas de limite de velocidade não existissem. 

Em novembro de 1996, ganhei meu primeiro prêmio como jornalista pela campanha Paz no Trânsito. Foi o prêmio CNT (Confederação Nacional dos Transportes) na categoria Mídia Impressa. Naquela data, durante a cerimônia, foi anunciado que a velocidade média do DF havia caído para 55 km/h. Estava, então, presente a condição para que se pensasse em implantar faixas de pedestres. Porque, imagine, seria impossível parar um veículo antes da faixa com uma velocidade de ambulância, que era como se dirigia por aqui.

 – Após mais de duas décadas, como você avalia o respeito ao pedestre hoje?

Acho que as faixas sobreviveram aos ataques de quem se opôs ou dos que se opõem à ideia de que o trânsito deve primar pela igualdade de direito entre os seus atores. A sobrevivência das faixas talvez se explique por ser um símbolo da cidade. Onde se respeita a faixa de pedestre no Brasil? Em Brasília. Mas as faixas de pedestres perderam a prioridade para o poder público, há muito tempo. 

Quem quiser entender o abandono das faixas de pedestres basta dar uma circulada por aí. É comum ver carros usarem as imediações da faixa como estacionamento, prática que além de ser uma infração de trânsito, inviabiliza a travessia com segurança, o motorista não vê o pedestre. Elas andam mal pintadas, mal iluminadas.  Hoje, sinto medo quando atravesso. Não saberia responder sobre estatísticas de crimes de trânsito associadas à tentativa de o pedestre usar as faixas – mas tenho visto casos na imprensa.  



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Uirá Uirá Lourenço
Morador de Brasília, servidor público, ambientalista e admirador da natureza, Uirá é um batalhador incansável pela melhoria das condições de mobilidade na capital federal. Usa a bicicleta no dia a dia há mais de 25 anos e, por opção, não tem carro. A família toda pedala, caminha e usa transporte coletivo. Tem como paixão e hobby a análise da mobilidade urbana, com foco nos modos saudáveis e coletivos de transporte. Com duas câmeras e o olhar sempre atento, registra a mobilidade em Brasília e nas cidades por onde passa, no Brasil e em outros países. O acervo de imagens (fotos e vídeos), os artigos e estudos produzidos são divulgados e compartilhados com gestores públicos e técnicos, na busca de um modelo mais humano e saudável de cidade. É voluntário da rede Bike Anjo, colaborador do Mobilize e membro da Rede Urbanidade.
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