Um novo Decreto de Calçadas poderá nos salvar?

Leticia Sabino, do blog Sampapé, discute a proposta do novo Decreto de Calçadas de São Paulo. E traz algumas sugestões que nasceram de uma discussão aberta e franca

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Fonte: Sampapé  |  Autor: Letícia Sabino  |  Postado em: 31 de julho de 2018

Convocação para o encontro: debate aberto para lev

Convocação para o debate do decreto: iniciativa da sociedade

créditos: Arquivo Sampapé | Foto: Rachel Schein


Apontamentos acerca do novo Decreto de Calçadas proposto pela Prefeitura de SP 

Por Leticia Sabino*

No dia 21 de junho a Prefeitura de São Paulo publicou no Diário Oficial do Município um comunicado sobre uma “consulta à sociedade civil” com relação a um novo decreto de padronização das calçadas. A tal “consulta” foi proposta através de envio de e-mail à Comissão Permanente de Calçadas, responsável pela criação do decreto, no prazo de 10 dias corridos - o que terminaria no dia 1 de julho, mas que teve ampliação de mais 15 dias, encerrando no dia 16 de julho. Após conhecer a proposta, promover a participação e enviar nossa sugestão à Prefeitura, este texto tem como objetivo dar visibilidade e relatar sobre o novo decreto de calçadas da cidade. 

Participação social
A nota no Diário Oficial dizia que a consulta se dava “considerando a importância de padronizar as calçadas e os passeios para a melhoria da mobilidade e da qualidade de vida dos munícipes, com vistas a permitir o deslocamento de qualquer pessoa, bem como favorecer as interações sociais e valorizar o ambiente urbano”.

Um primeiro questionamento: se a prefeitura entende a importância do tema para a vida de todo os cidadãos e cidadãs, porque não estimulou e criou verdadeiros espaços e formatos de participação social? Por que os espaços formais já existentes de participação social relacionados ao tema, como o Conselho Municipal de Trânsito e Transportes e a Câmara Temática de Mobilidade a Pé, não foram convidados a participar da construção? Por que a própria plataforma da prefeitura para ampliar a participação social, o gestão urbana, não foi utilizada para esta consulta?

Quem ajudou a dar visibilidade a esta consulta foi a imprensa, fazendo matérias em espaços de grande circulação sobre a “consulta” por e-mail. Porém, além desta forma de participação ser insuficiente, a participação era inacessível. Isso é, como o texto era jurídico e técnico, é muito difícil que cidadãos possam acompanhar e contribuir sem nenhuma mediação e esclarecimento. Sabe-se que a Comissão recebeu cerca de 200 e-mails. 

Cidadãs e cidadãos em evento organizado por SampaPé! e Cidadeapé para discutir sugestões ao Decreto 

Pés a postos
Como por princípio e atuação do SampaPé! só acreditamos na construção de cidades caminháveis e acessíveis para as pessoas junto com as pessoas— e criamos projetos e metodologias de engajamento comunitário e participação, como pode ser visto neste webinar realizado com o WRI —organizamos no dia 30 de junho junto com a Cidadeapé um encontro aberto para mais pessoas participarem desta discussão e construírem juntas as sugestões e questionamentos a serem enviados. Atuando assim como mediadoras e amplificadoras da participação, sem nenhum vínculo com a prefeitura. 

O encontro reuniu cerca de 40 pessoas de diferentes regiões da cidade a fim de entender o que era este novo decreto e participar, entre os/as participantes haviam representantes de outras organizações e grupos, como da OAB, ANTP, Conselho Participativo, Associação Laramara (de apoio à pessoa com deficiência visual) entre outras. Dividimos todos e todas presentes em seis grupos que lidavam com partes distintas da lei para conseguir discutir de forma mais aprofundada e propor mudanças. 

 

Comissão Permanente de Calçadas
A Comissão Permanente de Calçadas (CPC) foi instituída no dia 15 de março de 2017 por decreto do então prefeito João Dória, no âmbito do programa Calçada Nova, vinculada à Secretaria de Prefeituras Regionais. Em 2018, Bruno Covas fez algumas alterações levando a Comissão para o seu gabinete e acrescentando um representante do seu gabinete — ele comenta sobre isso no episódio do Sentindo nos Pés que gravamos com ele.

A CPC é composta por 13 pessoas que representam diferentes órgãos, sendos estes: a Secretaria Municipal das Prefeituras Regionais — SMPR, Secretaria Municipal da Pessoa com Deficiência — SMPED, Secretaria Municipal de Serviços e Obras — SMSO, Secretaria Municipal de Urbanismo e Licenciamento — SMUL, Secretaria Municipal do Verde e do Meio Ambiente — SVMA, Secretaria Municipal de Mobilidade e Transportes — SMT, Companhia de Engenharia de Tráfego — CET, Comissão Permanente de Acessibilidade — CPA, São Paulo Urbanismo — SP Urbanismo, São Paulo Obras — SP Obras, Departamento de Iluminação Pública — ILUME, Empresa Metropolitana de Planejamento da Grande São Paulo S/A — Emplasa e Gabinete do Prefeito.

De um lado há que se comemorar, pois de forma inédita há uma instância formal dentro da prefeitura com foco em calçadas, uma das estruturas mais importantes da rede de mobilidade a pé, reunindo diversas secretarias que se relacionam com este espaço de forma lidar com o tema de forma transversal. Mas por outro, é preciso reconhecer que a Comissão não tem abertura para os cidadãos, cidadãs e organizações da sociedade civil e que não estão lidando com as suas responsabilidades da froma devida e para gerar melhorias reais na realidade de quem caminha na cidade.
 

A CPC e o Plano de Mobilidade Urbana de São Paulo
A criação da CPC corresponde a uma das metas do Plano de Mobilidade Urbana Municipal (PlanMob) elaborado em 2015, que definiu: “Instituir até primeiro semestre de 2016, Grupo Executivo Intersecretarial para discutir e definir novo arranjo institucional para responder pela construção, reforma, adequação e regularização de calçadas, bem como pela consolidação de uma rede de circulação de pedestres.”

Como mencionado acima, com um ano de atraso, ou seja, em 2017, criou-se a CPC, que de acordo com o PlanMob deveria englobar em suas atribuições algumas das demais metas estabelecidas pelo PlanMob, como:

  • "adotar o rearranjo institucional e rever as leis e atribuições dos órgãos atualmente intervenientes na manutenção, reforma, adequações e construção de calçadas;
  • propor legislação que estabeleça a prefeitura como responsável pela construção, reforma e adequações das calçadas da cidade;
  • identificar e definir fonte de recursos para a construção, reforma e manutenção de calçadas;
  • rever o Decreto nº 45.904/2005 a fim de introduzir um padrão de largura mínima de passeio compatível com os fluxos de pedestre em circulação, em especial para passeios situados nas vias de transporte coletivo de passageiros;
  • adotar meta de adequar a acessibilidade em todos os próprios municipais até 2020;” 

Porque um novo decreto
A intenção da CPC em criar um Decreto de Calçadas foi em consolidar várias leis relacionadas a calçadas já existentes e normas de padrões técnicos em um só documento, facilitando assim a consulta e compreensão. A base principal do decreto é outro já existente de 2005 que versa sobre o passeio livre. Este decreto, até hoje, 13 anos depois, serve como referência para muitas cidades do Brasil, não só pelo que instituiu mas principalmente por ter se traduzido em um cartilha cidadã com fotos e desenhos. A proposta atual não cria novas regras, apenas unifica o que já existe na legislação sobre calçadas. Mas nem mesmo tudo foi agregado. 

Imagem da Cartilha do Passeio Livre

 

Algumas de nossas reflexões e apontamentos

O maior benefício da criação da atual minuta de Decreto de Calçadas foi trazer à pauta mais uma vez o descaso das nossas calçadas e a omissão do poder público em garantir conforto e segurança aos deslocamentos a pé, ainda que já seja previsto por lei padrão e fiscalização.

E os princípios?
Porém, conforme observamos internamente e no evento de participação, tanto o que se define e como se define deixam muito a desejar àqueles que colaboram com a construção de uma cidade mais caminhável. Logo no início, um erro grave do decreto é em não ter seus princípios claros com relação a priorizar quem caminha e garantir segurança e qualidade dos deslocamentos a pé. 

"Não queremos resolver agora"
Em todo o desenvolver da lei, outro problema está em deixar muitas questões em aberto a serem definidas resoluções posteriores feitas pela Comissão Permanente de Calçadas. Desta forma, aumentando seu poder de decisão sem prever nenhum tipo de participação ou pareceres técnico. Algumas destas questões são, por exemplo, sobre os materiais que poderão ser usados nas calçadas e os parâmetros de sinalização tátil. Fomos enfáticos em propor que estas resoluções devem ser feitas com maior participação social e que o decreto já deve estabelecer este modelo, além de amplo apoio técnico.

Uma cidade caminhável só será possível com a transformação da cidade para atender o mínimo e com prazos e sanções claras e reais

Outro ponto que destacamos sobre o decreto é não garantir mudanças reais na cidade. Isso fica claro ao não definir sobre um dos elementos mais responsáveis pela atual condição da cidade: a governança das calçadas. Em outras palavras, quem deve construir e fazer manutenção das calçadas, uma das principais infraestruturas do modo de deslocamento mais utilizado na cidade.

Atualmente a responsabilidade das calçadas é dos proprietários, porém quando se fala em leito carroçável a responsabilidade é do governo municipal. Assim, continua em questão como iremos solucionar o problema da construção das calçadas. Além disso, mesmo as calçadas de responsabilidade do poder público, que podem ser adequadas sem modificar a governança, o decreto não estabelece a obrigatoriedade de adequação, nem prazos e punições.

Na gravação do vídeo "Sentindo nos Pés" com o presidente da SP Urbanismo, José Armênio Britto Cruz, tivemos conhecimento de um levantamento da empresa municipal de urbanismo que afirma que 18% das calçadas da cidade são de responsabilidade pública. E que aproximadamente 80% dos fluxos a pé ocorrem nestes 18% de calçadas. De acordo com o PlanMob, o prazo para a adequação das calçadas de responsabilidade pública é até 2020. Por isso, também sugerimos que o decreto reafirme este prazo, e ainda defina como ocorrerão as fiscalizações e sanções caso não seja cumprido.

 

 

Calçadões do centro são de responsabilidade pública

Outro elemento do decreto que evidencia sua incapacidade em transformar a cidade em um ambiente mais seguro para os caminhantes é o capítulo de “situações atípicas”. Este capítulo praticamente anula tudo que é definido sobre padrões mínimos necessários e assume que muitas vezes não é possível ter a calçada ideal. Estes casos, segundo o decreto, devem ser tratados pelos órgãos correspondentes. Em outras palavras não precisam se adequar garantindo o mínimo para quem caminha. Fomos bastante claros que este capítulo deve ser suprimido e as tais “situações atípicas” devem se adequar ao atender a um padrão mínimo estabelecido pela própria para a circulação das pessoas. O que algumas vezes devem acontecer através da ampliação das calçadas e adequações e em algumas situações pela implementação de ruas compartilhadas, priorizando sempre quem está a pé.

 

 


“Calçada atípica” na 23 de maio para acessar o ponto de ônibus

Tudo que fica acima da calçada, para além de obstáculos, são importantes para o conforto e segurança dos pedestres

Quando a lei discorre sobre mobiliários urbanos, estes são considerados apenas serviços e elementos que ocupam as calçadas. Primeiramente é preciso que os mobiliários sejam encarados como elementos que tem como função e objetivo gerar mais conforto e segurança para os caminhantes. Desta forma, algumas de nossas sugestões sobre o que está na lei são: estabelecer padrões e metas para implementação de bancos para sentar nas ruas da cidade; tirar mobiliários urbanos que geram sensação de insegurança, principalmente os que podem ser um espaço de esconderijo —  observações que foram apontadas no Mulheres Caminhantes, projeto com perspectiva de gênero do SampaPé! —; e realocar grandes mobiliários para o leito carroçável quando houver faixa de estacionamento, deixando mais área de calçada para as pessoas.

 

 

Seis postes em uma mesma esquina na av. Brigadeiro Luís Antônio, Centro de São Paulo

Ainda sobre os mobiliários o decreto fala em condensar os postes quando possível, para não acontecer situações como as da foto acima, mas não diz quem vai fazer, como deve ser feito, prazos e sanções. Erro que se repete em diversas resoluções do decreto como já apontado. Além disso, nem mesmo se relaciona com a lei de aterramento de fios que colabora muito com o espaço das calçadas e o conforto do caminhar. E não trata o tema de iluminação pública e sinalização tátil e acessibilidade com a devida responsabilidade.

Informar e capacitar
Por fim, outro ponto que foi bastante debatido e permeou nossas sugestões foi com relação a falta definição sobre informação e capacitação. Ou seja, desde ter materiais acessíveis à população sobre os critérios das calçadas, até treinamento interno, nos órgãos da prefeitura para que funcionários públicos possam orientar cidadão, e também treinamento de mão de obra de acordo com o padrão. 

O Decreto pode e deve ser uma oportunidade de enfrentar alguns dos problemas que fazem São Paulo uma cidade não caminhável e agressiva para as pessoas se deslocarem a pé, porém para isso terá que sofrer muitas alterações e principalmente entender que a construção de uma cidade melhor para as pessoas só é possível quando as pessoas participam desta construção e são colocadas no centro das resoluções e leis. O documento completo com as nossas sugestões foi enviado por e-mail à e pode ser acessado neste link.




*Leticia Leda Sabino
é administradora e idealizadora do movimento SampaPé!. Depois de uma temporada na Cidade do México, ela percebeu que era possível viver sem carro e experimentar a cidade a pé. Decidiu então partilhar sua descoberta e criou o projeto de mobilidade urbana com foco no pedestre, para levar as pessoas a refletir sobre modos mais conscientes de locomoção.


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