"Carro é o cigarro de antigamente"

Em artigo na revista Fórum, o cronista Luis Cosme Pinto lembra como fumar deixou de ser natural e elegante. Compara o automóvel ao cigarro e defende o transporte público

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Fonte: Fórum  |  Autor: *Luis Cosme Pinto*  |  Postado em: 21 de março de 2024

Carro forrado com maços de cigarro na China

Carro forrado com maços de cigarro na China

créditos: hongkiat.com

Fumar era um hábito comum em salas de aula, programas de tevê, aviões, ônibus de viagem e até em salas de espera de hospitais. Nos anos 1990, o cigarro foi banido de locais fechados e se tornou um vilão indesejável. Agora, os carros começam a ser apontados como uma espécie de cigarro pesado e mortal, como escreveu Luis Cosme Pinto no artigo que reproduzimos aqui parcialmente...


"No dia de meu aniversário de 15 anos entrei no boteco da dona Isaura. Fui na dobradinha de Hollywood com Caracu. Voltei pra casa um pouco tonto e me sentindo adulto. Quinze anos depois, ali por 1991, jogava fora meus últimos cigarros. Arremessei um Carlton quase cheio para o outro lado da rua. Minha namorada na época, mais viciada que eu, ficou furiosa. Levantou da mesa do bar, atravessou a rua como se fosse salvar um bebê afogado, pegou o maço e soltou o esculacho: “Por que parar assim, com o maço cheio? Como você é radical.”


Acredite, naquela época quem parava de fumar era radical. Professores, inclusive o de educação física, também engoliam nicotina e alcatrão com gosto e pose. Em filmes e novelas galãs e musas tragavam com elegância. No futebol, Sócrates tinha fama de dar suas pitadas na concentração. Gerson, o Canhotinha de Ouro, fumava sem culpa no vestiário. Zito fumava pelo time todo. E uma torrente de asneiras tratava o canudo envenenado como amigo: “cigarro faz companhia”, “cigarro emagrece”, “cigarro descontrai”.


Num [programa] Roda Viva do século passado, dois jornalistas contestavam o então prefeito de São Paulo, José Serra. O político defendia a lei que proibiria o fumo em locais fechados e os entrevistadores discordavam. Diziam que a decisão era individual. Gente séria e inteligente pensava assim naqueles tempos. A lei passou pra sorte de todos, em especial das crianças e pessoas com alguma doença. Cidadãos desprotegidos que morriam aos poucos com a fumaça dos outros.


O carro é o cigarro de antigamente. A vida sobre quatro rodas prometia liberdade, rapidez, conforto. Pro comboio de lata passar, desfiguraram nossas cidades com viadutos, túneis e vias expressas. Tudo para o automóvel, quase sempre dirigido por um solitário. Hoje, a frota gigantesca nos leva de um congestionamento a outro, castiga pulmões e ouvidos. Assalta seus defensores com impostos, seguros e preços absurdos, mesmo quando o veículo está parado.


Carro é filho da preguiça e, como o tabaco, mata pelo sedentarismo, poluição, acidente ou estresse. Ex-fumante e ex-motorista, uso o transporte público há quase dez anos. Fora do horário de pico, ônibus e trens dão conta do recado. Nós, os passageiros, lemos, conversamos e vemos o mundo passar pela janela, enquanto ajudamos a cuidar da saúde da nossa cidade. Sem contar que muitas vezes chegamos na frente. 

 

*Luis Cosme Pinto é autor do livro "Birinaites, Catiripapos e Borogodó", da editora Kotter. Artigo originalmente publicado na revista Fórum com o título "Brasa Apagada". Leia o texto completo em https://revistaforum.com.br


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