Há um número aceitável de mortes no trânsito de uma cidade?

Em artigo na Folha, Mauro Calliari sugere treze motivos para o aumento do número de mortes no trânsito de São Paulo. E de outras cidades do país

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Fonte: Folha de S.Paulo  |  Autor: Mauro Calliari*  |  Postado em: 22 de janeiro de 2024

Trânsito em São Paulo: perigo nas ruas da cidade

Trânsito em São Paulo: sem controle, sem lei

créditos: Fernando Frazão / Ag. Brasil

A notícia já era esperada, mas o número final é chocante: 987 mortes no trânsito em 2023. É o ano mais fatal na cidade de São Paulo desde 2015.

 

As mortes são a ponta visível do iceberg da mobilidade. Para cada morte, há dezenas de feridos. Para cada ferido, há dezenas de acidentes. Para cada acidente, há dezenas de quase-acidentes. São esses quase-acidentes que estão tornando perigoso, temível ou no mínimo desagradável o ato de sair de casa. A própria urbanidade está ameaçada.

 

Para explicar esse retrocesso, tentei lembrar de tudo o que aconteceu nos últimos anos. Há algumas variáveis ligadas a transformações de comportamentos, mas a maior parte da explicação parece estar nas ações – e inações – da prefeitura. Em outras palavras, a maior parte dessas mortes poderia ser evitada:

 

Redução de mortes: meta abandonada

O que não se mede, não se controla. Em 2023, a Prefeitura de São Paulo decidiu retirar a redução de mortes por 100 mil habitantes do seu plano de metas. Era para reduzir para 4,5 mortes por 100 mil habitantes. Em vez de cair, aumentamos para mais de 8 por 100 mil.

 

Falta de fiscalização

Provavelmente, esta é a variável mais importante no entendimento do descalabro no trânsito. Sim, a prefeitura emite milhares de multas por velocidade, estacionamento em local proibido, etc. Mas não consegue, não pode ou não faz força para fiscalizar a falta de civilidade no trânsito. 

Basta olhar para algum cruzamento por quinze minutos para constatar que os radares atuais não dão conta e os fiscais fazem vista grossa para motos e automóveis que furam o sinal vermelho ou andam na contramão. Nem na própria faixa azul, uma das bandeiras da prefeitura, a velocidade é respeitada.

 

Programa de segurança viária esvaziado

A prefeitura lançou com pompa o Programa Vida Segura em 2019, inspirada nas experiências de cidades que adotaram o Visão Zero. Isso significaria investigar obsessivamente a razão de cada acidente e fazer mudanças em todos os locais perigosos. Com o abandono do programa, a obsessão pela melhoria parece ter se transformado em leniência com o erro.


Evolução de mortes na cidade de São Paulo Fonte: G1/Infosiga



Falta de dados

No último ano, o relatório da CET sobre acidentes e mortes simplesmente deixou de ser emitido. A razão alegada é um problema técnico, que não parece despertar muita prioridade. Os números de mortes apresentados aqui são de um relatório do governo estadual, chamado Infosiga.

 

Pouca prioridade para os bons programas

Existem boas ações em andamento: as áreas calmas, as ruas completas, a faixa azul, a reforma de calçadas movimentadas. Infelizmente, elas têm alcance limitado, demoram para ser implantadas e não contam com recursos para um programa que escale rapidamente para outras regiões. Enquanto isso, há dezenas de iniciativas de pequena eficácia, como os mímicos que tentam mudar maus comportamentos enquanto o sinal está fechado.

 

Sinalização e desenho urbano deficientes

A profusão de obras pela cidade deixa um rastro de sinalização desfeita. Enquanto se tapa um buraco ou se refaz um trecho de ruas (são mais de 700 pontos simultaneamente em obras hoje), ciclovias são interrompidas, faixas de pedestre deixam de ser pintadas e calçadas são interrompidas.

 

O medo da "indústria da multa"

Um ex-secretário de transportes declarou, durante uma reunião do Conselho de Transportes que a prefeitura estava preocupada em não ser vista como "indústria de multas". A declaração parece conter uma conta eleitoral macabra. Será que fiscalizar pode tirar mais votos do que deixar mais pessoas morrerem no trânsito?

 

Troca de secretários

Talvez não seja coincidência o fato de que a cidade tenha tido oito secretários de transporte diferentes durante as gestões Dória, Covas e Nunes, quando o número de mortes parou de cair e voltou a subir. Mesmo supondo que uma equipe competente toque o dia a dia, a quantidade de mudanças expõe diferenças de diretrizes numa estrutura sem liderança.

 

Aumento do número de veículos + condutores com pouco preparo

A frota de São Paulo continua aumentando, assim como o número de novos motoristas de automóveis e motos. Essas pessoas com pouco preparo enfrentam de cara um dos trânsitos mais difíceis do mundo e se tornam vítimas. Os motociclistas são, junto com os pedestres, o grupo que mais morreu no trânsito em 2023.

 

Aumento no delivery

A tendência disparou na pandemia e se mantém num patamar elevado. Os produtos são levados primordialmente em motocicleta, com prêmios para a rapidez da entrega e punição indireta para atrasos. Sem fiscalização, é comum ver gente andando na contramão ou na calçada, desrespeitando o sinal vermelho ou ultrapassando automóveis sem segurança.

 

Aumento do uso de celular

Mais de 70% dos acidentes são causados por falhas de atenção. A cada vez que um motorista tecla no celular, seu tempo de reação dobra. A profusão do uso do celular entre motoristas, motociclistas e até pedestres e ciclistas está jogando contra a atenção de quem se movimenta.

 

Velocidade

Se um carro atropela um pedestre a 30 km/h, ele tem 85% de chance de sobreviver. Se isso acontece a 50km/h, essa chance cai para 15%. Isso demonstra a importância de reforçar a redução das velocidades principalmente nas áreas residenciais, que têm placas de 30 km/h mas que ninguém respeita e ninguém fiscaliza.

 

Rodovias sob controle estadual e federal

Na lista das vias mais mortais da cidade, estão algumas das rodovias que cruzam o município, como a Fernão Dias e a Bandeirantes. As rodovias estão sob responsabilidade estadual ou federal e os entes federativos não se mobilizam por uma ação conjunta.

 

Há um número razoável de mortes no trânsito?
Lembro aqui de uma campanha do governo australiano de alguns anos atrás. 

 

 

 

No filme, o cidadão é indagado sobre o que seria uma meta razoável de mortes. Ao dizer um número qualquer, o sujeito era confrontado com o mesmo número de pessoas bem na sua frente. Todos conhecidos ou familiares. Engasgos e lágrimas.

 

A conclusão é óbvia. Nenhuma morte é aceitável.


* Mauro Calliari é administrador de empresas pela FGV, doutor em urbanismo pela FAU-USP e autor do livro 'Espaço Público e Urbanidade em São Paulo. 
Artigo originalmente publicado no jornal Folha de S.Paulo em 19 de janeiro de 2024.

 

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