Brasília em busca de uma nova utopia

A cidade que respeita a faixa de pedestres enfrenta agora o desafio de passar a limpo suas políticas de mobilidade

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Fonte: Mobilize Brasil  |  Autor: Marcos de Sousa/Mobilize Brasil  |  Postado em: 10 de maio de 2022

Cena diária nas avenidas de Brasília: sem espaço p

Cena diária: sem espaço para pedestres ou ciclistas

créditos: Uirá Lourenço/ Brasília para Pessoas

 

 

 


Até há alguns anos atrás, um dito comum na cidade de Brasília ensinava que o corpo dos moradores da capital é formado de três partes: cabeça, tronco e rodas.
Brincadeiras à parte, a cidade conta hoje com quase 2 milhões de veículos licenciados para uma população de 3,1 milhões de habitantes. E desses veículos, mais de 1,8 milhão corresponde a automóveis, caminhonetes, motocicletas ou motonetas, enfim, veículos para o transporte particular de pessoas.


Brasília, como se sabe, começou a nascer em 1956, a partir do Concurso Nacional do Plano Piloto da Nova Capital do Brasil, que teve como vencedor o projeto de Lúcio Costa, um entusiasta do automóvel, como a maioria dos urbanistas da época: dos sete projetos premiados no concurso, apenas um, o dos irmãos M. M. M. Roberto, propunha outras formas de mobilidade, com monotrilhos, passarelas motorizadas, ou simplesmente a mobilidade a pé. [1] 

 

Assim, a capital teria nascido com vocação para ser uma cidade motorizada, mas com a garantia de espaços preservados para a vida cotidiana, pedestre, conforme texto do próprio urbanista. [2]  Essa era a Brasília utópica, que teria, no máximo, 500 mil habitantes. As Unidades de Vizinhanças contariam com um mercado, padaria, farmácia, escola, clube e igreja, tudo nas proximidades, acessível a pé ou de bicicleta. Nas redes de tráfego motorizado, os carros circulariam em largas avenidas, sem sinais de trânsito ou congestionamentos.

 

Uma vida bem diferente da enfrentada pelas pessoas que vivem hoje no Distrito Federal e que precisam deslocar-se por horas para ir e voltar de seus afazeres cotidianos. Ou daqueles que se esforçam caminhando ou pedalando pelos caminhos descontínuos do Plano Piloto.

 

Uirá Lourenço, parceiro nas avaliações do Estudo Mobilize 2022 Foto: Arquivo pessoal


Um deles é o servidor público Uirá Lourenço, ativista da Rede Urbanidade e responsável pelo blog Brasília para Pessoas, no Mobilize Brasil. Ciclista, entusiasta da mobilidade ativa, Uirá foi o parceiro do Estudo Mobilize 2022 para as avaliações realizadas na capital do país. Em entrevista, ele explicou que sua participação no Estudo consolidou a visão crítica que tem sobre Brasília, como uma cidade dependente do automóvel e que exclui pedestres, ciclistas e pessoas que usam o transporte público. A percepção coincide com os dados de 2020 enviados pela própria Secretaria de Transporte e Mobilidade do DF, que indicam a prevalência do veículo individual, com 47% dos deslocamentos diários, contra 38,2% no transporte coletivo e apenas 14,5% de pessoas que optam por caminhar.


Na pesquisa, não há dados sobre transporte em bicicletas, embora seja o modo de circular preferido por Uirá Lourenço, sua esposa e os dois filhos do casal. "Ando mais de bicicleta e eventualmente de ônibus, mas o transporte coletivo é muito difícil, porque moro na Asa Norte e o metrô só atende à Asa Sul", explica Uirá. Ele lembra que a área norte da cidade aguarda desde 2011 a implantação de um corredor de ônibus (BRT), que "nunca saiu do papel".

 

 

Mapa do metrô de Brasília: rede ainda não atende à Asa Norte Imagem: Metrô/DF 

 

Transporte público: caro e restrito
No início da década de 2010, buscando sediar os jogos da Copa de 2014, o Governo do Distrito Federal (GDF) anunciava a implantação de um trem urbano para o município de Luiziânia, assim como a proposta do VLT que ligaria o aeroporto da cidade até a Asa Norte, passando pelo centro, proposição que foi abortada antes do mundial de futebol. Recentemente, a partir de 2020, o GDF retomou a proposta do VLT por meio de uma concessão para a iniciativa privada e iniciou estudos para o desenvolvimento do projeto, mas a iniciativa foi barrada pelo Tribunal de Contas do DF. A Semob/DF informou que o Distrito Federal conta com 133,51 km de corredores ou faixas exclusivas de ônibus.

 

Outro fator que afasta passageiros, lembra Uirá, é o preço do transporte público. "O bilhete único custa R$ 5,50 e não há integração física e nem tarifária com os ônibus que servem os outros municípios da regiao metropolitana. Essa integração, que facilitaria as viagens e reduziria custos, é uma das reivindicações da população local", explica o colaborador do Mobilize.

 

Corredor do BRT Sul na Estrada Parque Aeroporto Foto: Uirá Lourenço

 


Dificuldades para ciclistas
Brasília não é uma cidade plana, mas ostenta um relevo muito mais suave do que capitais como Belo Horizonte, São Paulo ou Salvador. Assim, as bicicletas podem ser uma excelente alternativa para o deslocamento das pessoas, especialmente se houver maior integração com o transporte público, avalia Uirá Lourenço. O Metrô/DF informou que o transporte de bikes no metrô é permitido a qualquer hora do dia, sempre no último dos quatro vagões de cada trem. Por seu lado, a Semob/DF tem um estudo para que o transporte das bicicletas também seja possível nos ônibus. Mas, lembra Uirá, faltam bicicletários nos terminais, inclusive na Rodoviária central de Brasília. E, conforme os dados da própria Semob, apenas três terminais de ônibus contam com bicicletários em operação.


Uma alternativa para os brasilienses que pedalam são as bicicletas públicas, compartilhadas. Segundo a Semob/DF, a cidade conta com 35 estações de bicicletas compartilhadas e deverá ter, ainda em 2022, mais 35 estações, com um total de 500 bikes, que pelo menos teoricamente podem ser usadas como complemento do transporte público. Em relação à malha cicloviária, a Secretaria de Mobilidade informa que cidade contava (em abril de 2022) com uma rede de 626 km de vias cicláveis, cifra relevante, mas insuficiente, sobretudo pela falta de conexões que permitam a circulação por toda a cidade, avaliam os cicloativistas brasilienses.


"A rede tem avançado, mas sem uma integração, sem interligações. E também falta manutenção e iluminação. E infelizmente, tanto as ciclovias como as bicicletas da Tembici estão concentradas na área mais central da cidade. Bairros distantes como Ceilândia, Sobradinho, ou Estrutural, estão à margem e não contam com esses recursos", denuncia o ativista da Rede Urbanidade.


Passagem subterrânea no Eixão: esburacada, suja e sem iluminação Foto: Uirá Lourenço/Brasília para Pessoas


A improvável mobilidade a pé
Quem já tentou caminhar em Brasília fora das superquadras sabe que a cidade lembra um deserto, com as "miragens" dos grandes edifícios ao longe. Mas, no dia a dia, para usar o transporte público, qualquer pessoa precisa caminhar até uma estação do metrô, um ponto ou terminal de ônibus. Seriam trajetos simples e tranquilos, não fosse a condição das calçadas, repletas de imperfeições, ou a ausência delas, obrigando os pedestres a caminharem nas trilhas formadas sobre os gramados. 

 

Brasília também foi uma das cidades avaliadas na Campanha Calçadas do Brasil 2019, quando ficou com a média de 6,25 (numa escala de zero a dez). Segundo essa análise, "as condições para o caminhar no interior das superquadras são razoavelmente adequadas, graças ao trânsito mais ameno e à cultura brasiliense de ceder passagem aos pedestres nas faixas de travessia. Os problemas se tornam mais evidentes (e graves) ao longo das grandes avenidas e nos intermináveis gramados que circundam os edifícios monumentais da cidade... No tocante à sinalização, Brasília perdeu pontos pela falta de semáforos para pedestres (média 3,75) e também pela ausência de faixas de pedestres em alguns locais avaliados...".

 

Entre 2019 e 2022, a gestão pública reformou e construiu calçadas em alguns pontos da cidade, mas ainda de forma insuficiente para as milhares de pessoas que circulam a pé. Pontos simbólicos desse desprezo público a quem caminha são as tenebrosas passagens subterrâneas sob o Eixão. Escuras, sujas e perigosas, essas passagens já foram alvo de um concurso de ideias para melhorá-las, por volta de 2010, mas mesmo com a premiação, nada foi feito e o abandono permanece como testemunha do descaso governamental a quem quer simplesmente cruzar a avenida a pé. Uirá Lourenço explica que as pessoas preferem arriscar-se no trânsito rápido da via do que cruzar os túneis de má fama.


"As avenidas de Brasília foram concebidas como rodovias, como vias expressas, considerando que ninguém teria que atravessá-las a pé. Mas, passados 60 anos, a cidade mudou e é necessário ajustar o caráter dessas pistas, convertendo-as em vias urbanas, com velocidade mais baixa, faixas de travessia e outros itens de segurança",  defende Uirá.

 

Pedestres em risco: ausência de semáforos e de faixas de travessia Foto: Uirá Lourenço

 

Para o ativista, um dos principais problemas, que tem sido discutido pela Rede Urbanidade, é a falta de transparência, e a ineficiência de canais para que a população possa acompanhar e opinar sobre os projetos. Uirá Lourenço afirma já ter registrado várias reclamações sobre um semáforo com defeito, bem na frente da escola de seus filhos, mas lamentou que o problema segue sem solução. "Os órgãos repassam as demandas entre si, empurram os problemas para a frente, mas não solucionam", reclama o ativista, que luta há mais de uma década por uma cidade com mais espaços para a vida nas ruas, com menos tráfego, menos ruído e maior respeito à natureza vigorosa do Cerrado, com seus ipês, gaviões, tucanos e outras surpresas, somente vistas por quem vai a pé ou de bicicleta.

 

Notas:
1. A Arquitetura Moderna Brasileira e o Automóvel: o casamento do século

2. "...Fixada assim a rede geral do tráfego automóvel, estabeleceram-se, tanto nos setores centrais como nos residenciais tramas autônomas para o trânsito local dos pedestres a fim de garantir-lhes o uso livre do chão, sem contudo, levar tal separação a extremos sistemáticos e antinaturais, pois não se deve esquecer que o automóvel, hoje em dia, deixou de ser o inimigo inconciliável do homem, domesticou-se, já faz, por assim dizer, parte da família. Ele só se "desumaniza”, readquirindo visà-vis do pedestre feição ameaçadora e hostil, quando incorporado à massa anônima do tráfego. Há então que separá-los, mas sem perder de vista que, em determinadas condições e para comodidade recíproca, a coexistência se impõe." (Lúcio Costa em Registro de uma Vivência, Empresa das Artes, 1997). 

 

 Esta matéria integra o trabalho de preparação do Estudo Mobilize 2022, um levantamento da mobilidade urbana nas 27 capitais brasileiras que está sendo realizado pelo Mobilize Brasil.

 

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Comentários

Nádia Bittencourt - 11 de Maio de 2022 às 18:36 Positivo 1 Negativo 0

Excelente trabalho. Pena que vejo pouca vontade política para mudar. Ouvi de uma Deputada Distrital que é loucura ir contra a cultura do carro pois a indústria automobilística injeta considerável cifra na arrecadação de Brasília. É o capital x vida.

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